segunda-feira, 14 de julho de 2008

O urubu louco

Em um dos dias em que saí de casa para brincar na rua em Estreito, minha mãe me avisou:
– Cuidado que tem um urubu louco por aí atacando as pessoas.
– O que é um urubu louco?
– Acho que foram os inseticidas das plantações que deixaram ele louco.
Por via das dúvidas nesse dia permaneci em casa. Embora minha preferência sempre fora me divertir na rua, havia coisas que podiam ser feitas em casa também. Toda criança sabe (ao menos naqueles tempos, sabia) que deve se aventurar fora de casa.
Nos anos 1970, o lar era um ambiente inóspito para as crianças, nada muito bom podia ser feito em casa: a tevê tinha poucos canais e pouco da programação era destinada a crianças, não havia muitos brinquedos indoor (como autoramas e videogames), nem videocassetes e variantes. Desse modo, ter relutado por dois dias em sair de casa foi suficiente para me sentir o verdadeiro Edmond Dantès.
Algumas vezes, saí de casa morrendo de medo de ser alvo do tal urubu louco. Além disso, temia pelo meu pai que tinha de sair todos os dias para trabalhar e voltava a pé do ponto de ônibus. Eu não tinha noção do estrago que um bicho desses poderia provocar a uma pessoa. Mas tinha certeza de que seria algo doloroso. E se existe uma coisa que eu sempre tive medo foi de sentir dor.
Passavam se os dias e eu comecei a desconfiar que a história do tal urubu louco não passava de invenção da minha mãe e do meu pai para evitar que eu fugisse de casa. Naqueles tempos, eu era o fujão: andava por todos os lados, descia dentro de redes de esgoto, entrava em dutos de canalização, buracos e construções abandonadas, ia para lugares bem longínquos, e por ter menos de 6 anos, meus pais se preocuparam muito com essa minha vocação para o nomadismo.
Do urubu louco, até então, nunca havia visto nada, exceto vultos e partes do corpo em cima de árvores, atrás de telhados e muros (que nunca soube se era a minha imaginação fertilizada pelas histórias que ouvia). Quando isso acontecia, eu me via possuído pelo medo e corria o mais desesperado que podia para minha casa. Corria e me fechava dentro de meu guarda-roupa. Achava que ali, dentro de casa, dentro do guarda-roupa eu estava seguro. Aí pensava: Será que ele não entrou aqui? Escondeu-se aqui dentro? Uma vez, em meu esconderijo na completa escuridão pude perceber os olhos do urubu voltados para mim. O medo foi tão grande que mal pude me mexer e fiquei ali paralisado olhando dentro da escuridão até criar coragem para saltar repentinamente para fora e constatar que nada havia em meu guarda roupa além de casacos e brinquedos.
Eu queria e não queria ver o urubu. Seria legal dizer que o havia visto nas conversas sobre o tema. Seria melhor ainda dizer que fora perseguido e que havia escapado destemidamente. Mas quando falavam do urubu eu só me recolhia de medo e nada dizia.
Por causa do bicho maluco assombrando as redondezas, tinha de receber minhas duas amigas em casa, Claudinha e Denise nosso assunto era sempre o terrível urubu louco e medo que compartilhávamos de ser atacados. Acabei abandonado a clausura poucos dias depois. Fui ver Denise. Ela me encontrou nos fundos de sua casa perto de um descampado. ]
– E o urubu?
– Não tem perigo, ele está atrás da casa.
Foram esses os primeiros passos fora de casa desde a notícia dos ataques dessa criatura terrível. Bicamos, mas eu, tenso, não relaxava nunca.
– Acho que vou para casa.
Com medo, meu primo Sandro sempre que me visitava evitava lugares ao ar livre. E foi em uma de suas visitas, logo que eles iriam embora – ele e minha tia – que eu pude ver por alguns minutos o ser que me amedrontou aqueles dias da minha infância. Ele apareceu em pleno vou e começou a bicar a tela do mosquiteiro do quarto da minha mãe. Ele era bem menor do que eu imaginara, mas nem um pouco menos assustador. Contudo, me senti seguro ao lado de minha mãe, minha tia e meu primo ante a visão do urubu maluco e que bicava sem sucesso a tela do mosquiteiro. Não me lembro de quanto isso durou ou o que o fez ir embora, só me lembro do pavor de sair, e do meu primo e sua mãe terem esticado a permanência em casa.
No dia seguinte recebi a notícia de que ele havia sido capturado e solto em outro lugar. Então, aos poucos pude retomar a minha coragem me dedicar às minhas fugas.
Eu sempre me questionei se de fato essa lembrança ser ou não real. Para mim, é muito real. Mas absolutamente ninguém com quem conversei se lembra desse fato.
Hoje, pensando sobre ele, me parece pouco plausível e ainda pouco real, mas em minhas lembranças mais antigas essa história é bem viva.