quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Capão do Diabo

– Dindouro, por que você é judeu?
– Ateu.
– Tem diferença?
– Claro. Judeu não acredita em Jesus, mas acredita em Deus. Ateu não acredita em Jesus nem em Deus.
– Pra mim, dá na mesma. Deus e Cristo são a mesma coisa. É Pai, Filho e Espírito Santo, aquela coisa, sabe?
– Sei. Mas para um judeu não é. Jesus é uma coisa e Deus é outra. Jesus era judeu.
– Era não.
– Procura na sua Bíblia que você vai ver.
– Era não. Escuta. É verdade que você já encontrou o Coisa-ruim?
– Não. Não é.
Tenham paciência com o Dindouro. Ele é daqueles que nunca gostou de ser contrariado. Ainda mais na sua fé de ateu. Assumir ter encontrado o Demônio iria abalar um pouco a sua crença de que o Demo não existe.
– Tanto disse que Deus não existe, que atraiu o Chifrudo para o lado dele.
– Ele tem parte com o Malvado. Isso sim. Por isso fala essas coisas.
Quando foi desvelado que o Dindouro havia encontrado o Pé-cascudo ninguém achou muito estranho. Afinal:
– Viu? Isso é bem feito para ele. Fica falando mal de Deus. Dessa vez, eu quero ver.
Embora seja coisa conhecida e sabida de todos, o Dindouro dissimula bem: nega e desconversa quando o assunto vem à baila. O azar dele é que dessa vez teve testemunha.
– Fosse uma, vá lá. Podia ser conversa. Mas duas.
Desse modo, são também duas as versões: uma é do Dindouro. Quer dizer, uma é de quem ouviu o Dindouro contando para alguém. Outra é a versão da testemunha (que pediu para não ser revelada) que espreitou o encontro. A coisa aconteceu mais ou menos assim:
Existe aqui na região um lugar conhecido como Capão do Diabo. O nome é por causa Dele que sobe dos infernos e vai ali para buscar as oferendas que "os seus" deixaram. Ninguém passa lá por volta de meia noite, que é a hora maldita. Porque se o Canhoto encontra um vivente no caminho arranca dele o espírito e o leva para a danação eterna.
O ocorrido se deu num dia em que o Dindouro teve um compromisso particular com uma dona casada lá em Brejo do Antão. Por um azar dos diabos, ele foi pego no durante. O Dindouro, que não é trouxa, tratou de montar num cavalo qualquer e sair assim mesmo completamente peladão em disparada. O marido saiu na sua carreira dele atirando. Sem ter tempo nem escolha, só restou ao Dindouro se embrenhar pelo Capão do Diabo. Ainda não era meia noite, mas como dizem por aqui: "um azar nunca vem sozinho". Não é que, logo nesse dia, o Cão-miúdo chegara mais cedo.
– Opa! Que moda é essa agora, filhote. É promessa ou aposta?
Não sei quem ficou mais surpreso se o Belzebu ou o Dindouro. Afinal, dar de cara com o Bode-preto assim é algo bem fora do normal.
– Eu também já vi.
– Quem?
– Ele.
– O Capeta?
- É.
– Ah, mentira.
– Mentiroso.
Por sua vez, emergir do submundo e encontrar um macho nu em cima de um cavalo é bem mais raro.
– Raro por quê? Ora. Satanás é o Grão-tinhoso, e já deve ter visto de tudo. E se ele já viu tudo, já deve ter visto muito elemento pelado em cima de cavalo branco.
Primeiramente, eu nunca disse que o cavalo era branco. Depois a história que eu sei é essa. Quem me contou falou que o Capa-verde ficou muito surpreso ao ver ali na sua frente um uma variante barbada da Lady Godiva. A versão menos confiável diz que o Dindouro sacou a arma e deu dois tiros no Excomungado, que evaporou numa nuvem de enxofre enquanto soltava uma gargalhada macabra. A outra versão diz que o Dindouro caiu de joelhos e implorou perdão ao menino Jesus e começou a orar e prometeu que dali em diante passaria a ir a igreja todos os dias e se tornaria um cristão exemplar.
– Nenhuma das duas histórias é verdadeira, mas no meu caso a primeira hipótese é mais provável. Mesmo eu não tendo arma e estando nu.
Mas o Cramulhano, em vez de ficar zangado ou amedrontado pelas orações, tomou foi simpatia do Dindouro..
– Pode parar, meu amigo. Pára essa rezadeira brava. Comigo você tem cartaz. É dos meus. Olha só, como você até hoje foi o único que veio aqui assim de peito aberto (e até mais), vou fazer assim: peça um desejo que eu realizo. Pode pedir qualquer coisa.
O Diacho fez ao Dindouro a mesma proposta que fez ao Nosso Senhor, quando O tentou no deserto. Mas como o Dindouro não tem firmeza, nem sabedoria de um Cristo, caiu na tentação de Lúcifer.
Sem nem parar para pensar disse que naquele momento o que mais queria era poder ficar invisível. Essa é a razão de o Dindouro ter hoje o dom de se tornar invisível.
– Por isso que ninguém viu o camarada chegar cavalgando desnudo pela cidade e entrar na sua pensão.
– Está explicado. Tudo se encaixa.
Bom, coitado daquele marido traído. Hoje, o Dindouro nem espera mais ele sair. Toma-lhe a mulher com ele ali deitado na mesma cama. Mas situação está igualmente difícil para todos os maridos da cidade, que ficam sempre alertas e suspeitosos de alguma coisa; sempre desconfiados das esposas. Afinal, o Dindouro sempre foi dado a mulheres que por sua vez já o achavam boa pinta. Invisível, agora, é um perigo.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Como forjar a verdade

Há diversos modos de se refutar uma questão filosófica. Posso dizer que eu já usei o mais estúpido deles. Obviamente (e felizmente), o cenário dessa discussão foi um bar no Bixiga em São Paulo, em meados dos anos 1990. O meu amigo dizia que acreditava na existência de uma verdade absoluta, e eu discordava dele. Na falta de bagagem de ambos, meu amigo resolveu que iria demonstrar a existência de uma verdade absoluta. Ele tinha um copo de uísque nas mãos e saiu-se com essa: "É uma verdade absoluta que vou beber deste uísque que está neste copo". Mais do que depressa, eu me adiantei e coloquei a mão sobre a boca do copo. Ele não teve dúvidas, tascou uma mordida na minha mão até que eu a retirasse do caminho, daí bebeu todo o uísque que havia. E foi assim, de uma maneira nem um pouco ortodoxa que meu amigo provou a existência de uma verdade absoluta.
Entendam que o que meu amigo defendia estava ligado ao essencialismo de Platão e à concepção referencial da linguagem de Santo Agostinho. Ele queria provar a existência de uma entidade metafísica, e não à existência da palavra verdade usada no cotidiano. E esse havia sido o nosso embate. Essa questão é portanto diferente da do meu aluno que via na existência do acaso uma afronta aos desmandos da sua divindade.
Hoje, sei que a última coisa que se deve fazer é refutar uma questão filosófica atirando-se sobre ela. Além disso, é muito fácil refutar a questão "É uma verdade absoluta que vou beber deste uísque que está neste copo" sem tomar uma mordida.
Há algumas formas bem ordinárias como: dizer que por não ter dito exatamente quando e nem exatamente o quanto do uísque beberia, a sentença "É uma verdade absoluta que vou beber deste uísque que está neste copo" não pode ser verificada em absoluto e por isso não tem validade como verdade absoluta. Ou mesmo que ele tivesse dito: Das 23 horas e 30 minutos e 12 segundos até as 23 horas e 31 minutos e 1 segundo, eu estarei bebendo 15 ml do uísque que está localizado neste copo." Ou suponhamos ainda que ele incluísse coordenadas exatas para a sua posição e a posição do copo e tudo mais. Mesmo assim o meu amigo falharia em sua tentativa de provar a existência, do ponto de vista filosófico, de uma verdade absoluta. Por que? Porque eu poderia simplesmente passar a exigir mais e mais detalhes que iriam além dos milionésimos de segundo e dos nanolitros. Até que se esgotassem as unidades de medida; quando poderíamos dizer: "Está vendo, não existem unidades de medida suficientes para atestarmos uma verdade absoluta."
Mas eu prefiro não ir por este caminho. Prefiro apenas dizer que a pergunta "Existe uma verdade absoluta?" é equivocada, e possível somente devido ao mau uso da gramática da palavra verdade.
Cotidianamente usamos a palavra verdade diversas vezes sem que ela nos cause nenhuma cãibra mental. E raramente temos dúvidas de como usá-la.
Compreendemos inclusive os diversos usos que podemos dar a palavras como "verdade".
Deixe-me dar alguns exemplos:
* "A verdade é a melhor camuflagem. Ninguém acredita nela". Max Frisch
* "A verdade brotará da terra, e a justiça olhará desde os céus". Salmos 85:11
Ou, ainda: imaginemos uma situação em que alguém esteja contando algo a uma pessoa, e uma terceira pessoa para reafirmar o que está sendo dito, profira a seguinte frase: "O que ele fala é verdade". Então? Quem melhor usou a palavra verdade?
Não vamos perder nosso tempo para tentar responder a essa questão. Não se pode dizer que exista um melhor uso para a palavra verdade, já que todos os usos servem perfeitamente para dizer aquilo que o falante quer. Em cada um dos casos citados somos capazes de compreender a gramática da palavra "verdade", e, dessa forma, estamos aptos a entender o que foi dito nas três sentenças. E todas são diferentes de usos como "A verdade come cenouras" ou "A verdade rasga todavia", que são usos notadamente equivocados para "verdade".
Desse modo a questão "É uma verdade absoluta que vou beber este uísque que está no meu copo" não está diretamente ligada a questão: "Existe a verdade absoluta?"
No primeiro caso temos um exemplo do uso corriqueiro para verdade (ainda que absoluta), na outra temos uma questão filosófica em que estamos atribuindo características adicionais para verdade.
Assim, eu refutaria não a questão "Existe uma verdade absoluta" (o que pretendo fazer em outro post aqui no "O Gramático". Mas sim o uso de uma "palavra" no uso cotidiano para sustentar a existência de uma entidade metafísica.

* A foto foi tirada por mim embaixo do Elevado Costa & Silva (Minhocão), à altura da Rua General Jardim. Desconheço a autoria do grafite.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

O fantasma do abismo

Dizem que morrera asfixiado. Ninguém se lembra muito bem da data. Mas alguns concordam que deve ter sido entre 1932 e 1935, provavelmente maio ou junho – porque chovia muito e fazia frio. Do nome, entretanto, todos se lembram muito bem: Douglas Macário. Era casado, sem filhos e morava na parte baixa da cidade. O que fazia no abismo? Ninguém nunca soube. Sabe-se que a sua viúva – durante o período em que ainda ficou na cidade – todo ano colocava flores na beirada do abismo; onde se supunha estar o cadáver do seu marido. Supunha-se, evidentemente, porque Douglas Macário jamais fora encontrado. Quando houve o desabamento, consideraram perigoso ir até lá retirar o cadáver. Além disso, dadas as proporções do acidente, nunca se cogitou a hipótese de Macário estar vivo. Por mais que tenha sobrevivido à queda (e pelo que dizem, o fez), o deslizamento que o soterrou fatalmente o matara. A esposa (há quem diga que seu nome era Dora outros que era Áurea) aos poucos foi sumindo. Os anos se passaram e só a viam uma vez por semana nas missas de domingo. Era vista, porém nunca notada. Até que foi definitivamente esquecida.
Só se lembraram dela, quando pela primeira vez o fantasma do marido foi visto vagando nas proximidades do abismo. Um jovem que voltava tarde da casa de sua noiva resolveu esticar um pouco a cavalgada e se perdeu. Ao encontrar o abismo, passou a margeá-lo para achar a ponte e por conseqüência a estrada. Topou com um homem sujo de terra que vagava por ali. Quando cruzaram os olhares, viu-se que no lugar dos olhos havia apenas dois buracos cheios de terra. O peão correu o mais que pode, quase caiu do cavalo direto no abismo. No dia seguinte, descreveu a cena para seus amigos na praça central. Foi Otacílio que se lembrou de Macário.
– É Macário.
- Quem?
- Macário.
- Que Macário?
E não é que a descrição batia com o homem com terra nos olhos? Quando foram informar à senhora Macário (Dora ou Áurea), foram informados pela ex-vizinha de que ela havia se mudado para outra cidade.
- E agora?
- Bom, mas mudou-se para onde.
- Até onde sei, foi morar com uns parentes.
- Mas onde?
De factual, não se tinha mais nada sobre a viúva; a não ser especulações sobre certo amante equatoriano que a levara para sua terra. Ou de que havia se tornado beata em Nova Fronteira.
– Vou lá no abismo à noite perguntar ao fantasma o que ele quer e por que ele voltou do além.
Na primeira noite, como havia trabalhado o dia todo e ainda tinha muito trabalho para o dia seguinte, o coitado do Hermes não pôde ir. Jurou que iria na segunda-feira, mas se esqueceu e saiu com os amigos para uma bebedeira e nunca mais tocou no assunto.
O Newtinho, que era kardecista, conversava com sua finada mãe todas as sextas-feiras no "centro". Ele disse que a mãe havia sabido por outro espírito que o Macário ainda "não sabia que estava morto" e por isso continuava vagando por aí. A falecida mãe, segundo o Newtinho, pediu orações para que o Macário recebesse ajuda espiritual para perceber que estava morto. Havia ainda o risco de ele ser obsedado por uns espíritos que gostam de ficar obsedando outros. Mas ninguém deu muita importância, porque logo depois o fantasma foi visto mais uma vez. Ele estava sentado no beiral de uma janela em frente a igreja da matriz. Quem o viu foi justamente o Dindouro. Logo ele. Nunca acreditou em nada, ateuzão das antigas, deu de cara com a alma penada do pobre Macário. O Dindouro sempre foi um camarada muito difícil, e nunca admitiu ou confirmou que vira o fantasma.
– Isso é história desse povo que não tem mais o que fazer. Além do mais, fantasma não existe.
Mas dizem que o Dindouro apareceu naquela noite na pensão onde morava branco igual leite de virgem, falando que vira a assombração. Contaram que o Dindou teve a seguinte conversa com Macário:
– Dindouro.
– Quem é?
– Sou eu, Macário.
– Macário?
– Sim. Eu quero que peçam para o Padre Antônio rezar a minha missa de sétimo dia.
O Dindouro, vendo tratar-se de coisa ruim, sacou o revolver e disparou dois tiros contra a alma do soterrado.
– Mentira! Viram? Eu nem revolver tenho.
As balas passaram direto pelo espectro que desapareceu depois de soltar uma gargalhada.
A quem diga que o diálogo foi outro, e que o fantasma pedia para salvar a sua esposa que estava prisioneira em uma caravana de ciganos. Mas como o Dindouro se recusa a falar no assunto e nega o ocorrido, nunca saberemos o que o fantasma de Macário quis de verdade com a sua última aparição.
O que ninguém sabia mesmo era quem seria esse tal de Padre Antônio. É bem provável que ele se referia ao Padre André, já que estava de frente da Matriz e o padre de lá é o André.
– Já houve um Padre Antônio aqui na cidade?
– Muito tempo atrás teve um; mas acho que o nome não era Antônio, não.
– Então, ou ele trocou o nome do padre ou o Dindouro ouviu errado.
– Tem certeza que ele falou Antônio, Dindouro?
– Ora, vá para a puta que te pariu!
No fim, resolveram perguntar à mãe do Newtinho que era naquele momento a pessoa mais próxima do finado fantasma.
– Ela mandou falar que um espírito de luz acabou resgatando Macário do Umbral. Agora ele vive feliz instalado em um subúrbio de uma cidade espiritual qualquer que não me lembro o nome. Tem até uma namorada lá. Ele agradece as orações de todos.
– Mas e da missa? Ela não falou nada?
Na ausência de informações concretas, foram pedir ao Padre André que rezasse, por fim, a tal missa de sétimo dia.
– Como é que eu posso rezar uma missa de sétimo dia para uma pessoa que já morreu há não sei quantos anos?
– Mas é a última vontade do falecido, Padre. Não pode contrariar.
– Vamos fazer assim. Na próxima missa de defuntos eu incluo o nome do Macário. Está bom assim?
– Ele falou sétimo dia.
Alguém se lembrou que Antônio, na verdade, era o nome do chefe de terreiro local: Pai Antônio de Logun Ede.
– O Macário era mesmo meio macumbeiro.
– O que significa Macário? É alguma coisa a ver com macumba, não é? Vai ver ele falou pai Antônio.
– E pai-de-santo reza missa?
– Mais ou menos.
No fim, por causa da comoção popular em torno do fantasma do abismo – como ficou conhecido o nosso caro Macário na ocasião –, seu nome foi incluído nas preces da missa de defuntos e deram um dinheirinho para o pai Antônio fazer uma oferenda (ou aquelas coisas que se faz em terreiro), mas não verificaram se ele fez mesmo.
Todos acham que o finado ficou muito feliz, porque foi logo depois disso que Macário realizou o seu primeiro milagre.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Retrato do acaso como uma divindade

Um dia um de meus antigos alunos - um dos poucos admiráveis, por sinal – tentou me explicar a sua relação com a divindade a quem devotava sua fé. Ele dizia que não acreditava na existência do acaso. Segundo ele tudo o que existia ou acontecia fazia parte dos planos dessa divindade; e por mais trágicos que parecessem os seus desmandos, tudo sempre conspirava para um bem maior. Lembro-me que na ocasião ele chegou a dizer que "o acaso não existia". Eu o alertei para o risco de se pensar daquela forma (principalmente quando se crê em uma divindade criadora como a dele); já que na ausência do acaso, ele teria de procurar razões para todos e quaisquer elementos e eventos ad infinitum.
Decidi não prolongar a discussão por certo pudor pelo fato de que esse aluno acabara de sofrer um acidente que o deixara paralítico para o resto de sua vida. Além disso, me parecia cruel, num momento como aquele, questionar os fundamentos da fé de uma pessoa na sua condição. Entretanto, esse evento nunca me saiu da cabeça e não sei por que razão me retorna com freqüência. E hoje durante o meu banho matinal essa lembrança me ocorreu novamente. Resolvi, então, colocar aqui no "O Gramático", minha refutação àquela tese de meu ex-aluno.
De certo modo, a confusão que existe na sentença "o acaso não existe" é perceptível. O termo ou a palavra "acaso" existe; somos capazes de compreender o que uma pessoa quer dizer quando nos fala que "nos encontrou por acaso", por exemplo. Contudo, ficamos desconfortáveis quando deslocamos a palavra de seu uso cotidiano e olhamos para ela como se pudesse existir como um evento ou objeto isoladamente. Essa perplexidade decorre talvez de não usarmos de modo adequado a gramática da palavra "acaso".
Eu também não acredito na existência do "acaso" como entidade metafísica que se opõe à existência de uma divindade caprichosa como aquela em que meu aluno acreditava.
Pensar assim nos coloca diante do velho problema de encontrar um substantivo ao qual queremos atribuir-lhe características comuns de outros substantivos, como, por exemplo, "aquela pêra existe"; desse modo "aquele acaso existe". Voltemos à frase "nos encontrou por acaso", aqui vemos que o acaso marca uma ocorrência um "encontro". Algo que acontece e não algo que "existe".
Vamos imaginar que você olhe para um determinado objeto sobre a sua mesa e reflita sobre a existência da queda desse objeto. Ele não está em queda, mas ao empurrá-lo para fora de sua mesa, eis que ela ocorre. Então podemos concluir que ela existe. Mas você olha novamente para o objeto agora, no chão de sua sala, e novamente ele não está em queda.
O dilema do meu ex-aluno estava no uso impróprio da gramática da palavra "acaso". Ao atribuir-lhe uma existência (ou inexistência), ele cometeu um deslize equivalente ao de se atribuir um peso (ou uma cor) a uma nota musical, por exemplo. Como dizem: não é porque algumas coisas foram criadas, que posso inferir que "todas" as coisas foram "criadas", do mesmo modo, existência é uma característica atribuída a algumas coisas e que não necessariamente se aplica a outras.

segunda-feira, 14 de julho de 2008

O urubu louco

Em um dos dias em que saí de casa para brincar na rua em Estreito, minha mãe me avisou:
– Cuidado que tem um urubu louco por aí atacando as pessoas.
– O que é um urubu louco?
– Acho que foram os inseticidas das plantações que deixaram ele louco.
Por via das dúvidas nesse dia permaneci em casa. Embora minha preferência sempre fora me divertir na rua, havia coisas que podiam ser feitas em casa também. Toda criança sabe (ao menos naqueles tempos, sabia) que deve se aventurar fora de casa.
Nos anos 1970, o lar era um ambiente inóspito para as crianças, nada muito bom podia ser feito em casa: a tevê tinha poucos canais e pouco da programação era destinada a crianças, não havia muitos brinquedos indoor (como autoramas e videogames), nem videocassetes e variantes. Desse modo, ter relutado por dois dias em sair de casa foi suficiente para me sentir o verdadeiro Edmond Dantès.
Algumas vezes, saí de casa morrendo de medo de ser alvo do tal urubu louco. Além disso, temia pelo meu pai que tinha de sair todos os dias para trabalhar e voltava a pé do ponto de ônibus. Eu não tinha noção do estrago que um bicho desses poderia provocar a uma pessoa. Mas tinha certeza de que seria algo doloroso. E se existe uma coisa que eu sempre tive medo foi de sentir dor.
Passavam se os dias e eu comecei a desconfiar que a história do tal urubu louco não passava de invenção da minha mãe e do meu pai para evitar que eu fugisse de casa. Naqueles tempos, eu era o fujão: andava por todos os lados, descia dentro de redes de esgoto, entrava em dutos de canalização, buracos e construções abandonadas, ia para lugares bem longínquos, e por ter menos de 6 anos, meus pais se preocuparam muito com essa minha vocação para o nomadismo.
Do urubu louco, até então, nunca havia visto nada, exceto vultos e partes do corpo em cima de árvores, atrás de telhados e muros (que nunca soube se era a minha imaginação fertilizada pelas histórias que ouvia). Quando isso acontecia, eu me via possuído pelo medo e corria o mais desesperado que podia para minha casa. Corria e me fechava dentro de meu guarda-roupa. Achava que ali, dentro de casa, dentro do guarda-roupa eu estava seguro. Aí pensava: Será que ele não entrou aqui? Escondeu-se aqui dentro? Uma vez, em meu esconderijo na completa escuridão pude perceber os olhos do urubu voltados para mim. O medo foi tão grande que mal pude me mexer e fiquei ali paralisado olhando dentro da escuridão até criar coragem para saltar repentinamente para fora e constatar que nada havia em meu guarda roupa além de casacos e brinquedos.
Eu queria e não queria ver o urubu. Seria legal dizer que o havia visto nas conversas sobre o tema. Seria melhor ainda dizer que fora perseguido e que havia escapado destemidamente. Mas quando falavam do urubu eu só me recolhia de medo e nada dizia.
Por causa do bicho maluco assombrando as redondezas, tinha de receber minhas duas amigas em casa, Claudinha e Denise nosso assunto era sempre o terrível urubu louco e medo que compartilhávamos de ser atacados. Acabei abandonado a clausura poucos dias depois. Fui ver Denise. Ela me encontrou nos fundos de sua casa perto de um descampado. ]
– E o urubu?
– Não tem perigo, ele está atrás da casa.
Foram esses os primeiros passos fora de casa desde a notícia dos ataques dessa criatura terrível. Bicamos, mas eu, tenso, não relaxava nunca.
– Acho que vou para casa.
Com medo, meu primo Sandro sempre que me visitava evitava lugares ao ar livre. E foi em uma de suas visitas, logo que eles iriam embora – ele e minha tia – que eu pude ver por alguns minutos o ser que me amedrontou aqueles dias da minha infância. Ele apareceu em pleno vou e começou a bicar a tela do mosquiteiro do quarto da minha mãe. Ele era bem menor do que eu imaginara, mas nem um pouco menos assustador. Contudo, me senti seguro ao lado de minha mãe, minha tia e meu primo ante a visão do urubu maluco e que bicava sem sucesso a tela do mosquiteiro. Não me lembro de quanto isso durou ou o que o fez ir embora, só me lembro do pavor de sair, e do meu primo e sua mãe terem esticado a permanência em casa.
No dia seguinte recebi a notícia de que ele havia sido capturado e solto em outro lugar. Então, aos poucos pude retomar a minha coragem me dedicar às minhas fugas.
Eu sempre me questionei se de fato essa lembrança ser ou não real. Para mim, é muito real. Mas absolutamente ninguém com quem conversei se lembra desse fato.
Hoje, pensando sobre ele, me parece pouco plausível e ainda pouco real, mas em minhas lembranças mais antigas essa história é bem viva.

terça-feira, 27 de maio de 2008

Rosa e Azul

Na minha mais longínqua infância, morei em um minúsculo lugarejo chamado Estreito, um distrito da cidade de Pedregulho no interior de São Paulo. Lá moravam apenas os funcionários da estatal Furnas Centrais Elétricas que trabalhavam na usina construída ali no fim dos anos 1960. Para ser exato, construída no estreito do Rio Grande.

Essa pequena vila tinha uma estrutura bem pequena, mas suficiente para comportar os funcionários da usina e suas famílias. O lugar se resumia a uma centena de casas, um clube, um hotel, um cinema, um açougue, um mercado, um ambulatório, uma igreja, um aeroporto, um banco, uma butique. Vendia-se o básico. Se você quisesse coisas mais complexas tinha de viajar a Franca, a mais ou menos 70 quilômetros.

Pelos meus cálculos, morei nesse lugar dos 0 aos 4 anos. Lá estão as minhas lembranças mais antigas e, por essa razão, muito preciosas. Nunca converso muito com meus pais sobre esse período, por isso imagino que grande parte do que me lembro tenha saído de minhas memórias mesmo.

A casa, salvo engano, tinha três quartos (sendo um de empregada), sala, dois banheiros (um de empregada), cozinha, copa conjugada a uma área de serviço, onde ficavam o tanque de lavar roupas, uma mesa onde fazíamos nossas refeições e a máquina de costuras da minha mãe. Lembro-me também de um pequeno forninho elétrico com uma resistência incandescente, de uma mesa na cozinha. A sala tinha, se é que me lembro, uma reprodução do quadro As Meninas Cahen d’Anvers de Renoir. Havia ainda uma estante de livros (com poucos livros), um sofá e uma poltrona de couro marrom e uma tevê preto-e-branco de 16 polegadas onde eu assistia à Pantera Cor-de-Rosa e Viagem ao Fundo do Mar. Os quartos tinham cortinas com forro. O chão da cozinha era de ladrilhos vermelhos e pequenos, enquanto o da sala e dos quartos era de tacos de uma cor bem escura.

Do lado direito da casa havia uma grande árvore onde meu pai dependurara um balanço. Eu que naqueles tempos pensava que os meus tios e meu avô – que eram mecânicos de automóveis – fossem uma espécie de professor Pardal (Gyro Gearloose), sonhava com alguma engenhoca que pudesse me fazer balançar sem que existisse alguém me empurrando.

A maior conquista daquele período foi aprender a falar. Comecei com menos de um ano e não parei mais. Era a verdadeira matraca, falava com tudo e com todos (o tempo inteiro): no supermercado, no ônibus em casa. Não sei como meus pais me suportavam. Fora isso, eu gostava de utilizar intermináveis "porquês" para tudo e qualquer coisa.
Não sei como depois de ter dado à luz uma maritaca fujona, indomável e intratável como eu (eu era quase um Fox Terrier), meus pais ainda resolveram ter mais filhos. Felizmente, para mim inclusive, eles tiveram muito mais sorte com os outros dois.

Você já deve ter ouvido falar da loucura que foram os anos 70. Pois é, eu me lembro basicamente de ter tido duas amiguinhas: Claudinha e Denise. Irmãs, eu acho. Se bem que tenho impressão de que Claudinha era morena e Denise, loura. Vivíamos juntos os três, nadávamos sem roupas, tomávamos banho juntos e não queríamos nem saber de trabalho. Eu era mais ligado à Claudinha. Ela foi a primeira amizade com uma pessoa fora de minha família. Lembro-me de que ela morava na casa da esquina no quarteirão em frente ao de minha casa. Saindo de casa, virando a esquerda podia-se ver o quintal da casa dela. Havia um terreno bem amplo junto ao quintal.

É muito triste que se escapem os momentos exatos que passamos juntos e mesmo os seus traços já me escaparam. Lembro-me apenas de ela ser morena, ter cabelos cacheados. Nosso relacionamento não era lá muito paz e amor. Ao contrário, era repleto de brigas. Mas eu era bem mais esperto do que hoje; minha arma contra a opressão da mulher era a mordida. Brigávamos pelos motivos mais absurdos e mais irrelevantes, brigas feias. Nunca houve reconciliação, até porque tudo já era previamente perdoado. Eu imagino que não havia nada que pudéssemos fazer um ao outro que abalasse a nossa amizade. Éramos companheiros de absolutamente tudo, brincadeiras, traquinagens e fugas - esse o meu passatempo predileto.

Das várias coisas que eu me lembro de Claudinha, ficou um único detalhe que descobri apenas há alguns anos, numa das poucas vezes que falei com aminha mãe sobre ela. Aliás, quem se lembrava desse detalhe era ela, porque eu jamais o havia percebido. O que é quase inconcebível, já que eu era uma radiola destemperada e ela, uma pessoa tão próxima com quem eu tinha contato diário. Desse modo, foi um choque quando minha mãe me disse que Claudinha era muda.

Eduardo Gomes, o brigadeiro

Outro dia me perguntaram se eu sabia algo sobre a origem do brigadeiro (do doce, obviamente). Às vezes, eu penso que já me tornei uma espécie de Guia do Curioso ambulante, ou seja: um camarada que detém toda a sorte de conhecimentos inúteis sobre assuntos pitorescos. É engraçado como passo essa impressão (que, aliás, é absolutamente verdadeira). Todo o meu conhecimento intelectual está baseado na profundidade das amenidades ou na superficialidade das coisas realmente importantes.

Vamos ao brigadeiro. Especulando um pouco sobre a sua origem, eu comecei a pensar na sua receita:

1 lata de leite condensado
1 colher de sopa de margarina sem sal
4 colheres de sopa de chocolate em pó

Que tipo de pessoa faria algo como misturar chocolate com leite condensado e manteiga? Só poderia ser alguém querendo fazer uma bomba. Basta nesse caso bombardear as fileiras inimigas com um monte dessas coisas, que diante da impossibilidade de comer apenas um, os soldados adversários acabariam por se tornar uma massa obesa de diabéticos com as artérias entupidas de manteiga. Aí está! Deve ser essa a razão do nome.

Na verdade, não é nada disso. A criação do doce é atribuída às moçoilas do bairro paulistano Pacaembu, que resolveram fazer uma festa no intuito de angariar fundos para a campanha do Brigadeiro Eduardo Gomes à presidência da República em 1945. Reza a lenda que as mocinhas tinham, de fato, se encantado mais com a beleza do Brigadeiro do que com o seu discurso ou plano de governo.

O doce causou um verdadeiro frisson durante a campanha às eleições presidenciais daquele ano. Entretanto, isso não foi suficiente para o airoso e elegante Brigadeiro Eduardo Gomes derrotar o feio e atarracado General Eurico Gaspar Dutra.

Eduardo Gomes nunca foi presidente da República, mas em compensação ele é patrono da forca aérea brasileira e acabou por batizar um de nossos doces mais populares.

domingo, 11 de maio de 2008

A incrível candidatura secreta de José dos Santos

Já quis muito escrever sobre um outro personagem da minha infância: José dos Santos e a sua candidatura secreta a vereador. Diferentemente de Abdias Abdul Abdei, o meu personagem é baseado em uma pessoa que de fato existiu, o evento que descrevo também é similar ao que de fato aconteceu.

Já fiz vários esboços de contos e até escrevi um que considerei acabado (felizmente perdido). Um amigo dizia que história era boa, mas o problema era o meu conto: "Uma coisa muito modernosa", disse na ocasião.

Sei muito pouco - quase nada - sobre o que de fato correu. O caso ocorreu há muito e foi relatado en passant por meu pai, que trabalhava com o personagem em questão, desse modo tudo o que for dito aqui, o será de uma forma bem romanceada. Ok?

Decidi retomar essa história por causa desse Blog. Eu, muitas vezes, penso que escrevo para ninguém. Tenho quase absoluta certeza de que ninguém me lê. O meu objetivo já foi ser lido, hoje é só escrever. Por essa razão me acho muito parecido com a candidatura de José dos Santos a vereador.

O que narro a partir daqui é apenas uma homenagem a essa personalidade e não tem quase nenhuma, muito pouca, conexão com o fato real.


Quando descobriram que ele era candidato, foi quase um desespero para José dos Santos. Tal foi o constrangimento que um dos presentes chegou a dizer: - Pode deixar, Zé, a gente não conta para ninguém.

Para ele era uma chateasse incomensurável, uma deselegância, o ato de pedir votos. Sonhava com a democracia grega, com um sorteio...

Quando saíram as listas com o nome dos candidatos notou que o seu nome aparecia duas vezes

- Como assim? Os números, no entanto, eram diferentes. Fora informado que havia um outro candidato de mesmo nome na cidade e que registrara um nome igual. Recomendaram que fizesse propaganda destacando o seu número em vez do nome. “- Propaganda? Jamais.” Para quê eleições? Por que não o método da democracia da Grécia? Sorteamos o cidadão e pronto, está eleito. Neste instante lhe ocorreu como estávamos atrasados em relação aos gregos: “- Perto deles somos uns chimpanzés, uns australopitecos.”

Quem sabe se o outro José dos Santos fosse bem votado, talvez sobrassem alguns votos para este. Não muitos, só o suficiente para ser eleito vereador. Mas nunca havia visto nenhuma propaganda de seu homônimo. Algumas pessoas registram seus nomes verdadeiros apenas por obrigação – a lei eleitoral exige –, mas fazem propaganda de seus apelido, vai ver era esse o caso. Ou não. Pode ser que seu outro compartilhasse da mesma convicção. Quem sabe?

Todos os dias em que subia no ônibus da empresa passou a procurar lugares vagos, para que não pensassem que estava sentando ao lado de alguém para lhe pedir votos; e mesmo que não o fizesse verbalmente, sentar-se ao lado de alguém poderia funcionar para intimidar o camarada e lhe conferir o seu voto. Isso, definitivamente, era o que José não queria de maneira nenhuma. Ele só desejava os votos espontâneos e de peito aberto, de pessoas que realmente acreditassem na sua capacidade e integridade; "-Quem seriam essas pessoas? Afinal, ninguém me conhece a fundo. Dá para perceber que sou honesto e competente?" Passou a evitar os colegas, principalmente quando havia uma rodinha de amigos, dessas fugia categoricamente. Com o tempo, passou a não cruzar olhares com as pessoas, fossem elas amigas, familiares ou colegas de trabalho.

Pensava com freqüência no suicídio de Getúlio Vargas: o ato extremo redentor “- Alguém que imputa a si mesmo a pena máxima só podia ser inocente.” O que o Getúlio queria? Afinal, não era ser reeleito. “- Seria capaz?”

Despertou no meio da noite. Sonhara com um tiro no peito um dia antes da eleição. Ofegante tateou por dentro do pijama e não encontrou nada. Suor, apenas. A cabeça parecia girar e em seu íntimo sentia uma sensação de tragédia inevitável. “- O que será, meu Deus?” Dias depois veio um telefonema do partido. Iriam organizar um comício na cidade. O candidato a prefeitura discursaria antes de um show sertanejo. José não poderia falar, evidentemente. Mas poderia ficar ali no palco ao lado do candidato a prefeito. Durante o show, ele poderia distribuir alguns panfletos. “- Você fez panfletos.” “-Não, ainda não tive tempo.” “- Você vai?” “- Eu vou. Afinal, é uma oportunidade”.

Como não poderia falar? Que absurdo. Então ele era o quê? Um mero aparato de uma candidatura maior. Ele tinha idéias. Tinha planos. Bons planos. Panfletos só fazem sujar a cidade. São uma indecência.

No dia marcado, comparecera. Subiu ao palco e lá se encostara na lateral mais à esquerda do palco, próximo à coluna de caixas acústicas. O candidato a prefeitura discursava inflamadamente. A cada crítica ao seu opositor, seus correligionários urravam. José urrou só algumas vezes. O sangue lhe havia subido às faces. Corou. Ao final desceu do palco e caminhou para casa. Já longe ouvia os primeiros cumprimentos dos cantores sertanejos ao público. “- Definitivamente, não nasci para a politicagem.”

quinta-feira, 8 de maio de 2008

Lei da conservação das massas

Em 1794, no dia 8 de maio, ciência moderna perdeu literalmente uma de suas cabeças mais geniais. Por causa de seu envolvimento com o governo monárquico, Antoine-Laurent de Lavoisier foi levado à guilhotina e executado pelos novos governantes que tomaram o poder com a Revolução Francesa.
Lavoisier é considerado o pai da química moderna. Suas descobertas – entre elas a de vários elementos químicos (oxigênio e enxofre, por exemplo), da fórmula da água e a conclusão de que a soma das massas dos reagentes é igual à soma das massas dos produtos de uma reação - mudaram o curso da pesquisas científicas até então.
Na ocasião de sua execução, ele tinha 50 anos e estava em plena produção científica. E, apesar de ter sido condenado por corroborar com o injusto regime monárquico, era, na verdade, um liberal. Tanto que um ano e meio após a sua execução, ele foi considerado inocente das acusações que o levaram à guilhotina. Seus bens foram enfim entregues à sua viúva com um bilhete que dizia o seguinte: "À viúva de Lavoisier, que foi injustamente condenado".
O lamento do matemático Joseph Louis Lagrange é um retrato melancólico do que foi a perda de Lavoisier: "Num instante cortaram-lhe a cabeça, mas outra igual talvez não surja na França num século".
Cerca de um século após a sua morte, uma estátua em sua homenagem foi erguida em Paris. Muitos anos mais tarde se descobriu que aquela estátua não era de Lavoisier. O escultor usou peças descartadas de outras estátuas. A cabeça, por sinal, era uma peça que não fora usada na escultura do Marques de Condorcet.
Lagrange estava certo. Nem para sua estátua a França fora capaz de produzir uma cabeça igual à de Lavoisier. Ainda assim, a estátua permaneceu lá até a segunda guerra, quando foi derretida para ser usada na indústria bélica.

Por falar nisso. Pouca gente sabe, mas o dia de hoje é chamado de o Dia da Vitória em muitos países. "Dia da Vitória, por quê?" devem estar se perguntado os flamenguistas que me lêem. Porque foi nesse dia que, há 63 anos, se noticiou a rendição da Alemanha Nazista.
Os aliados tinham combinado entre si que a comemoração seria no dia 9 (amanhã). Entretanto, a notícia da rendição vazou, a imprensa noticiou e todos correram às ruas para comemorar no dia 8 mesmo. Exceto na União Soviética, lá imprensa era controlada pelo governo e não vazou nada.

sexta-feira, 2 de maio de 2008

Memória musical

Quando se é criança o dinheiro é sempre escasso. Isso é até bom, já que você não fica por aí exercitando o seu consumismo. No mais, você arruma um modo de fazer o que precisa com os recursos que dispõe.
No meu caso, eu nunca me preocupei em em ter de arrumar algo para comer nem precisei pensar em procurar onde morar. Como a maioria das crianças da classe média, só fui trabalhar depois de adulto. Eu recebia uma mesada do meu pai, que era mais do que eu precisava e bem mais do que eu merecia (bom, eu não pensava assim na época, é verdade).
Com mais ou menos 10 anos comecei a me interessar por música quando meu pai comprou um aparelho de som. Era um maravilhoso 3 em 1 com um reloginho digital verde fosforescente, que era também despertador.
Naqueles tempos, já existiam os rádios relógios, mas eram muito caros, aliás todo equipamento eletrônico era caro. Por isso, meu pai aproveitou para comprar um que agregava tudo: toca-discos, toca-fitas, e radio relógio. Todos os dias despertava todos da casa ligando na única rádio de Itumbiara e acordava a casa toda. O meu pai sempre se levantava e saia correndo do seu quarto até a sala para desligá-lo. Durante alguns anos da minha vida, eu passei acordando com as canções sertanejas da rádio AM de Itumbiara, no interior de Goiás, que salvo engano se chamava Rádio Paranaíba AM. A FM só chegou por lá em 1986.Eu falava da minha primeira relação com a música. Por questões financeiras, eu preferia comprar fitas cassete gravadas a discos de vinil (mais tarde, graças ao Plano Cruzado, passe a consumir vinis com voracidade). Como eu me interessava por música pop da época, era difícil encontrar um disco que me agradasse na íntegra, desse modo eu ia a uma loja no centro da cidade e escolhia umas músicas para serem gravadas em uma fita cassete.
Funcionava da seguinte forma, o vendedor separava os discos com os sucessos do momento e tocava algumas músicas para você ouvir. Em geral ele já colocava a agulha bem em cima do refrão, para que você identificasse logo a música. Assim você ia dizendo ao vendedor qual música você queria e ele ia anotando em um caderno. Podia-se escolher ao todo 16 músicas (8 de cada lado) para ser gravada nas fitas Basf de em geral 60 minutos. Depois disso, você ia embora e voltava um dia ou dois depois para buscar a sua fita gravada, com direito a capinha com o nome das músicas datilografada e com o seu nome na lateral. A lógica era simples. Ao comprar um disco, você estava condenado a ficar com aquelas músicas, com a fita você poderia regravar se enjoasse das músicas, nesse caso era só levar a sua fita novamente à loja e escolher outras músicas que você pagaria só a gravação.Eu deveria ter umas 10 tapes. A primeira fita que gravei abria com os inesquecíveis Spider Murphy Gang - Ich Schau Dich An, e I don´t wanna dance do Eddy Grant, a terceira era Billie Jean do Michael Jackson. Tinha também Radio Ga-Ga do Queen (como bem lembrou meu irmão), Naked Eyes - Always Something There to Remind Me e por aí vai.
É engraçado como posso quase me lembrar de quase todas músicas de uma fita gravada há mais de vinte anos. Meu universo musical, quando possuía apenas 10 fitas cassetes, estava resumido a pouco mais e 80 músicas, hoje tenho ao todo mais de quatro mil músicas. Uma lista com praticamente tudo o que se pode imaginar, que vai de Shostakovich até Xatuba de Mesquita. Quando garoto, eu mal poderia sonhar com essa quantidade de músicas. É bem provável que a principal discoteca de Itumbiara não tivesse um volume tão grande. Hoje, não faz muita diferença. Se as 4 mil não são suficientes, eu sei onde posso conseguir mais em poucos minutos. Basta pensar em uma música que rapidinho ela já está no meu computador, no MP3 portátil, no som do carro.
O mais engraçado é que a maioria das vezes, eu não quero ouvir nada.

quarta-feira, 30 de abril de 2008

The Raskolnikovs

Todas as vezes que acontece um crime que causa comoção popular (como o da Isabela Nardoni e do Farah Jorge Farah), vem gente discutir a pena de morte no Brasil. Apesar de muitos desconhecerem o fato, a Pena de Morte ainda vigora em nosso país. Ou seja, a constituição de 1988 ainda contém em seu texto uma única exceção que levaria um brasileiro a ter sua execução decretada pela justiça. A pena capital é aplicada aqui "apenas" a crimes de guerra que coloquem a soberania da nação em risco. Entre idas e vindas, a pena foi banida desde 1978 para crimes não militares.

Entretanto, há em todo mundo 64 países que ainda mantém a prática em sua constituição para os mais variados "crimes", que vão desde assassinatos em série ou corrupção a adultério e homossexualismo (em alguns países é crime). Os que mais executam pessoas hoje em dia são (por ordem): China, Irã, Paquistão, Iraque, Sudão e Estados Unidos.

Ainda bem que não estamos, por exemplo, na Arábia Saudita. Pois, lá eu poderia ser condenado por apostasia à decapitação com espada. Isso, iria prejudicar as postagens nesse blog.

Sem falar na questão humanitária, tenho dúvidas em relação à funcionalidade da pena de morte. Outro dia li uma estatística da PUC de Campinas, que falava que dos 141 homicídios ocorridos na cidade no ano passado, 40% permanecem sem solução. O que me faz pensar que grande parte dos homicidas, ao cometerem seus delitos, convivem com a possibilidade real de jamais serem pegos. Parecem ser raros os Raskolnikovs hoje em dia (acho que são raros desde sempre).

Contra a pena de morte sempre penso em Sócrates, Jesus, Boécio, Bruno, Jan Hus e Maria Antonieta, Tiradentes e outros desafortunados.

segunda-feira, 28 de abril de 2008

When the Tigers broke free

Pessoalmente, acho o trabalho do Roger Waters meio mala. Tenho certeza de que grande parte da minha birra com os pink-floyds se deve à simpatia e preferência que sempre tive pelo Syd Barrett - que foi expulso da banda em 1968 - como o grande gênio da turma. Também nunca gostei de o Pink Floyd ter se tornado uma banda de rock progressivo.

Entretanto, tenho enorme simpatia por pessoas, principalmente artistas, que perseguem um tema de maneira obsessiva – na verdade, eu, de fato, os invejo por nunca ter sido capaz de fazer o mesmo. Adoro, por exemplo, as recorrências do Zé Celso ao seu Teatro Oficina, Woody Allen à sua Nova York, João Gilberto e as mesmas músicas de sempre, entre outros que não me lembro agora.

Roger Waters, no caso, é obcecado pela morte de seu pai, Eric Fletcher Waters. Ele morreu quando Roger tinha então 5 meses de idade. Eric Fletcher participou da Batalha de Anzio, na segunda guerra mundial. Por um motivo estratégico os comandantes da operação resolveram retardar a retirada da tropa em que Fletcher estava, mesmo sabendo que isso seria fatal para os fuzileiros. O pai de Waters acabou sendo um entre diversos soldados que perderam a vida por causa dessa decisão.

Roger Waters, ao que parece, nunca foi capaz de superar a perda do pai que jamais conhecera. Sua morte e as circunstâncias em que ela ocorreu passaram a ser tema recorrente em diversos momentos em sua obra. Mas uma música em especial chama atenção pela belíssima letra: When the Tigers broke free. Fora a grande sacada do título (Tigers eram, entre outras coisas, os tanques alemães que a tropa de Fletcher pretendia retardar), a música é belíssima. Waters descreve bem o que aconteceu na Batalha de Anzio, menciona fatos e detalhes bem fiéis aos dados históricos. Para mim, no entanto, o momento mais grandioso da música é quando ele encontra em uma gaveta junto com algumas fotografias antigas a carta de condolências enviada pelo Rei George à sua mãe. Talvez haja aqui haja aquele sentimento inefável - como o de "arrumar o quarto de um filho que já morreu" ou "como uma fisgada no membro que já perdi" Claro que Waters é bem mais sutil do que isso. O Chico Buarque, nessas, bateu abaixo da linha da cintura.

Uma das constatações mais tristes que a filosofia me deu foi a de que o passado não é um lugar. Pode parecer idiota, mas muita gente pensa no passado dessa maneira, como se ele tivesse uma substância e que está lá em um ponto inatingível como algo que tem uma matéria: Lá estão nossa juventude, entes queridos já falecidos e nossos bons momentos. E gostamos de pensar que estão guardados nesse lugar a que chamamos passado. (óbvio que eu estou sendo caricato e que ninguém pensa assim, mas é um rascunho para eu me fazer entender) Todavia, além de não haver nada lá, não existe nenhum lá. Do mesmo modo pensar no passado dessa maneira é um mal uso da linguagem. Não sei se foi Moore ou Wittgenstein que teria dito (estou parafraseando): "Você pode se lembrar do passado, mas esse ato só ocorrer, de fato, no presente". Gosto muito também de uma frase, em geral atribuía ao sofista Antífon, que diz o seguinte "o tempo não é real, é apenas um conceito, uma medida".

Voltando à música. Ao descrever em detalhes a carta de condolências, Waters talvez sinta a perda irreparável e a impossibilidade de passar uma infância na companhia do pai, porque não existe nenhum pai, ele não tem substância e está perdido definitivamente. Nada resta além daquilo que foi esquecido em uma velha gaveta: o selo vermelho do Rei George, a forma de canudo e as letras douradas, que ele encontrou outro dia.

O meu pai, por exemplo, é e sempre será um figura de central importância em minha vida. Sei bem o quanto vale a infância e a vida ao lado de meu pai. Um general, que tem muitos soldados ao seu comando, pode dispor facilmente da vida de alguns se isso lhe for vantajoso. Para um filho é impossível abrir mão de seu único pai. Esse conflito aparece no final da música quando ele canta: "And that's how the High Command took my daddy from me."

A coincidência trágica em tudo é que justamente quando resolve escrever sobre isso, - como se já não bastasse o Alexandre Nardoni – li uma notícia sobre Josef Fritzl. Um austríaco de 72 anos que manteve sua filha - da qual abusava sexualmente desde os 11 anos – no porão por 24 anos e teve com ela 7 filhos. E por que? Com dizia o velho Witt (sempre, sempre, sempre ele) "Se um Leão pudesse falar, nós não o entenderíamos". (Eu jurava que a frase era com um tigre. De qualquer modo, não o entenderíamos, também).

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Larry Walters

Por mais que possa ser trágico o desaparecimento do padre Adelir de Carli ao tentar quebrar o recorde de vôo em balões de aniversário, não consigo deixar de compará-lo a Anne Edson Taylor, aquela que desceu as cataratas do Niagara em um barril, lembram-se? Para mim, tipos como esse padre fazem parte do clube dos malucos suicidas.

Como há a possibilidade de nosso caro padre - tomara que não - estar hoje na cidade dos pés juntos, não vou escrever sobre ele. Já que a história dele ainda está sem o final. Em vez disso, vou falar sobre: Larry Walters. Em 1982, Larry Walters, um motorista de caminhões de Los Angeles, Califórnia, promoveu uma façanha similar à do padre de Carli.

Durante toda sua vida, Larry tentou ser piloto de aviões. Entrou para a aeronáutica, sendo, entretanto, descartado para a função em decorrência de problemas de visão.

Foi então que ele teve uma idéia genial que mudou a sua vida. Comprou 45 balões meteorológicos, encheu-os com gás hélio, amarrou tudo a uma cadeira dobrável – dessas de piquenique –, não se esquecendo de levar uma caixa de isopor com uma cerveja e uns sanduíches, caso sentisse fome ou sede. Para descer quando quisesse, levou uma arma de fogo. Com ela, era só disparar contra os balões e estourá-los. Gênio, não?

Seu plano era voar sobre seu jardim e a vizinhança a uns 10 metros de altura por algumas horas e depois descer. Só que ele não contava com um pequeno detalhe que o obrigaria a fazer uma mudança de planos. Ao cortar a corda que o segurava, em vez de subir os 10 metros planejados, ele subiu só a 5 mil metros de altitude (mais ou menos a mesma altura em que aqueles pára-quedistas que ficam um tempo fazendo acrobacias no ar saltam). Num rompante único de lucidez até o momento, Larry considerou que não seria muito viável atirar nos balões para descer àquela altitude. Assim, passou 14 horas congelando nos céus de Los Angeles, entrou na rota dos aviões (pilotos da TWA e da Delta Airlines reportaram por rádio a presença de um objeto estranho na rota do aeroporto internacional de Los Angeles). Quando hélio dos balões começou enfim a perder pressão Larry começou a descer e descer. Como a dirigibilidade de uma cadeira com balões meteorológicos não é lá muito precisa, Larry acabou aterrissando sobre uma linha de transmissão de energia elétrica. Ficou preso nos cabos elétricos nas proximidades de Long Beach por quase 20 minutos antes de ser resgatado. Reza lenda, que um dos bombeiros teria ficado indignado com Larry e perguntado: "Mas o que diabos você foi fazer lá em cima?" Ao que Larry teria respondido: "Ué? Por que? Não pode?"

Larry deixou seu trabalho como motoristas de caminhões e passou a viver em programas de entrevistas em palestras motivacionais. Até que em 1993, disparou um tiro a queima roupa no próprio coração. Suicídio? Há quem alegue que ele esperava sobreviver a isso inclusive. Para quem se safou de uma morte absurda, até que essa foi uma maneira bem intimista de morrer.

Esse tipo de aventureiro que desafia a morte sempre fascina. O padre Adelir, por exemplo, planejava ficar 20 horas suspenso por balões de festa. Para tanto, usava uma roupa especial que a protegeria do frio, um capacete, um pára-quedas e um GPS que não sabia usar. Bem arriscado não? A gente nem nota, mas algumas vezes o risco mora ao lado - ou passa ao lado. Viu? Então olhe pela janela do seu carro quando estiver em um engarrafamento. Imagine dirigir uma moto a 100 por hora por um corredor de 30 centímetros, onde a qualquer instante um carro pode mudar de faixa e atingi-lo? Só no ano passado morreram mais de 400 na cidade de São Paulo. Hoje de manhã foram mais dois. O trânsito de são Paulo mata por ano mais motociclistas do que o Irã de condenados à morte. Proporcionalmente, morrem mais motociclistas aqui do que aventureiros que saem por aí dependurados em balões de festa. Já nem estou mais achando o padre Adelir tão maluco assim.

terça-feira, 22 de abril de 2008

Mensagem para o Senhor.

Um dia já fiquei ofendido quando me desejavam um "Vai com Deus", ou "Fica com Deus", "Jesus isso... Jesus aquilo". Isso já passou. Não sou capaz de dizer "amém", jamais serei. Apenas agradeço e penso que esse é apenas o modo de algumas pessoas me desejarem algo de bom. Abstração é tudo, algumas vezes. Entretanto, ainda fico desgostoso quando recebo um e-mail com conteúdo religioso, pior ainda quando me deixam um recado assim no Orkut.

Nunca enviei deliberadamente nenhuma mensagem com conteúdo agnóstico por simples respeito a quem a recebe. Afinal o suprassumo da deselegância, na minha modesta opinião, é mandar mensagens com conteúdo religioso para toda e qualquer pessoa indiscriminadamente. É claro que eu não acho que a pessoa que envia essas mensagens quer me converter. Penso apenas que ela as considera bonitas por lhe trazerem conforto mental e a sensação de paz, que, evidentemente, só podem ser compartilhados por alguém que possua crenças e convicções semelhantes. Enviá-las sem critério sem se preocupar se a pessoa é atéia, espírita, católica, muçulmana, judia, teísta, deísta, agnóstica etc. só as tornam enfadonhas e desnecessárias.

Vou contar duas historinhas para lustrar o que estou falando. (É verdade que nem precisa. Você já entendeu. Mas vou contá-las assim mesmo).

Outro dia um amigo ateu, recebeu em seu perfil no Orkut uma mensagem que enaltecia os valores de Jesus e mencionava uma passagem em João (3: 18-21). Um silogismo básico que eu vou resumir da seguinte forma:
*Jesus é a luz.
* Quem não ama a luz, não o faz, pois suas obras são más.
* Meu amigo não ama Jesus. Então:...
O meu amigo pensou em um primeiro momento que se tratava de uma afronta. Mas como bom ateu que é, relevou e deu de ombros.

O mesmo não aconteceu com um camarada que era da Sagrada Igreja Neopentecostal da Cruzada pela Aliança e Redenção em Cristo, Nosso Senhor, Para a Salvação e Prosperidade da Humanidade (vai ver era outro nome) que trabalhava comigo.
Eu por um acaso estive no meio de uma troca de e-mails. A gênese dessa bagunça começou quando a moça espírita, em um ato completamente sem noção enviou por e-mail uma apresentação de slides (com fotos lindas de bebês, flores e pôr-do-sol) com mensagens de Chico Xavier para todo departamento. O rapaz da Igreja etc. etc. se enfureceu e respondeu com passagens da Bíblia que, na opinião dele, mostravam que o espiritismo era "doutrinas de demônios" (1 Timóteo 4. 1) . Não preciso dizer onde isso foi parar (a não ser que você queira saber; se for o caso faça um comentário que eu te conto) No meio disso, estava eu. Um figura completamente desprovido de deuses, demônios e religiões, filho de um protestante com uma católica, casado com uma espírita, irmão de dois ateus, amigo de católicos, judeus, crentes, macumbeiros, muçulmanos, ateus e agnósticos, que apenas queria ser deixado em paz e não receber e-mails religiosos.

Nada muda

- O dia está diferente hoje.
- Como?
- O dia. Está diferente.
- Ah, sim. Como?
- Diferente.
- Diferente? Diferente como?
- Sei lá. Diferente.
- Ahm.
- ...
- ...
- Todos os dias são. Quer dizer, alguns não. Mas têm dias que são todos muito iguais. Iguais...
- Hum-hum.
- Hoje não. Não sei. Mas hoje é diferente. (...) Eu vou embora...
- ...
- Estou indo embora. Eu vou te deixar. Estou te deixando.
- Eu já sabia.
- Sabia?
- É.
- E então?
- Então nada.
- Nada?
- Não. Olha, aliás, você demorou. Mais do que eu imaginava... Mais do que eu imaginei que iria.
- Não, não. Eu não queria. Eu tentei. O seu problema é que você sempre pensa no pior. Você sempre espera pelo pior. E quando acontece algo que é ruim, é como você se comporta. Como se nada pudesse ser feito.
Como se já soubesse. Como se fosse uma fatalidade inevitável.
- Eu não queria...
- Não queria, mas não fez nada.
- ...
- Olha, eu não conheci ninguém. Eu não estou interessada em outro. Eu ainda te amo, mas não posso suportar mais...
- Eu sei.
- Pára. Pára de dizer eu sei, eu sabia. Por que?
- ...
- ...
- Eu. Eu vou para ficar num flat. É aqui na...
- Não. Fica aqui. Saio eu. Deixa.
- Um dia as coisas vão ser claras. Tudo o que está escondido há de ser revelado. O mundo se fará homem.
- Não importa. A relação com o todo não mudará.
- Nada muda.
- O nada muda?
- Nada. Nada muda.
- Exceto a mudança
- Eu mudei.
- Nada muda.
- Qual a diferença entre nada e "o nada"?
- Nada muda.
- Não existe "o nada".
- O conceito existe. E você entende o que eu quero dizer.
- Não, não entendo o que você quer dizer quando diz: "Nada muda".
- O que as pessoas querem dizer quando dizem: "Nada muda"?
- Eu não sei o que as pessoas querem dizer. Só sei o que as pessoas dizem. Se elas querem dizer e não dizem é ou porque não sabem se expressar ou porque não podem se expressar. Ou, ainda, não querem.
- É. É verdade.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Adbias Abdul Abdei

Quando criança – não me lembro exatamente em que idade –, meu pai me contava as histórias de um personagem que havia criado.E por ser um sujeito muito bem-humorado e engraçado seu super-herói fugia um pouco dos padrões; tinha um nome bem singular: Abdias Abdul Abdei.

A história desse herói era realmente impar. Abdias Abdul Abdei, fôra um dia o japonês Joaquim da Silva, isso até comer um estrume de vaca que havia sido bombardeado por raios laser provenientes de um disco voador de origem desconhecida. Ele não se transformara logo em Abdias Abdul Abdei, o japonês, Joaquim da Silva tornou-se Gertrudes, a telefonista.

Conhecendo os pais de hoje, sei que muitos deles torceriam o nariz para esse tipo de androgenia. Um jovem pai disse que não gostava que o filhão assistisse aos desenhos do Bob Esponja, que como todos sabemos é homossexual assumido. O japonês Joaquim da Silva foi o primeiro caso de mudança de sexo que tive notícia. Que eu me lembre a coisa não parava por aí. Essa Gertrudes ao gritar o nome Aaaa-bdias... Aaaaa-bdul... Aaaaa-bdei, transformava-se então no tal. O porquê de alguma pessoa, algum dia de sua vida, vir, por um acaso, a pronunciar tal nome (assim como o porquê de um japonês ter comido esterco – bom, vai ver que ele leu na bíblia: Ezequiel 4:12) nunca sequer passou pela minha cabeça. Essas questões nem viam ao caso.

O tal do Abdias era um tipo atrapalhado, feio, não dispunha de absolutamente nenhum superpoder. Era um típico anti-herói. Contra quem ele lutava? Jamais se soube. Sei que um belo dia, ao receber a notícia de que sua mãe (?) tinha um problema no abdômen, indagou: Abdômen? Pronto, transformu-se no destemido Abdômen! Forte, robusto e bonitão, Abdômen combatia o crime com a ajuda do cehfe de polícia, e seu maior inimigo era o vilão Abnegado, que por sinal era ele próprio depois de saborear uma deliciosa mandioca. Bom, basicamente essa era a estrutura da série de histórias que meu pai me contava. Lamentavelmente, eu não me lembro de nenhuma em particular.

Se é que alguém teve a paciência de chegar até aqui após ler toda essa maluquice, pôde perceber que o herói criado por meu pai era uma espécie de transformista, pansexual, com distúrbio de personalidade (o Bob Esponja perde de goleada). É engraçado como reunia todos os arquétipos tradicionais em um só: era mocinha, o bufão, o herói e também o vilão (sem falar que ele ainda era o pobre camponês comedor de estrume). Na verdade, Abdias era a oposição entre a dualidade entre bom e mal e a planificação dos personagens infantis.

Minha memória é bem curta. Tenho uma limitação abissal de souvenires de meu passado guardados comigo. Wittgenstein (sempre ele), chegou a dizer – no final do Blue Book, salvo engano – que só o presente era o caso (estou parafraseando); já que nós precisamos dele para trazer de volta as lembranças do passado, e esse passado só se realizam de fato no presente. Assim, às vezes, reservamos um momento ou outro que nos faz sorrir no canto da boca nos lembrando de nossos souvenires de tempos atrás.

Bom, mas essas histórias talvez tenham me ajudado a esquecer os "quando", "porque", "para quê". Além de me deram uma boa bagagem para entender, por exemplo, Monty Python e filosofia da linguagem. Sabe, aquela coisa, não é porque você consegue formular perguntas que com "Por que" + "substantivo" + "verbo" + "adjetivo" (ou seja lá qual seja a variação) é que tenha de ser assombrado pela dúvida que ela provoca.

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Filosofia de folhetim

Confesso que fico intrigado quando um tablóide ou semanário surge com uma "abordagem filosófica" para um tema polêmico. Deve existir editor que precisa desesperadamente de uma resposta que venha calar os "por que?... por que?..." que fica ecoando em seu espírito. Como para alguns, a filosofia é apenas a versão revista e ampliada do "Guia do Curioso", a resposta pode sair de lá. Aí fica parecendo que a filosofia é uma espécie de manual de explicações, lá encontramos o "certo", o "errado" e os "porquês" e o "etc."

Por mais que se entrevistem filósofos e filósofos sobre temas como a comoção popular diante de um crime ou qualquer outro assunto, dificilmente haverá um acordo entre todos.

No recente caso da morte da garota Isabella Nardoni em São Paulo, ao tentar explicar o grande interesse do público no assunto, vários veículos de mídia recorreram a psicólogos, sociólogos e, a nova moda, a filósofos. Um dos jornais falava em quebra do "Contrato Social" e outro de "Imperativo Categórico" e por aí vai. Claro que se pode usar ambos para explicar o que acontece. Mas poderíamos usar também, por exemplo, "Lei Natural". Que tal?

O que há de efetivo nessas explicações? Bom, esses termos surgiram na filosofia justamente para tentar fornecer explicações a questões como essa e sob esse aspecto elas são válidas. Não são, contudo, conclusivas como foi dito nas reportagens. É um dos cuidados que se deve ter ao trata um assunto à luz da filosofia. Isso, é claro, no caso de você não ser um filósofo formulando um pensamento ou coisa que o valha.

Isso porque uma pergunta às vezes não tem necessariamente uma resposta filosófica (ou melhor: uma resposta filosófica conclusiva). O jornalista, ao formular uma pergunta com um porquê, supõe que exista uma resposta ou que deva haver uma, e, quem sabe, supões também que pode chegar a ela por meio da investigação. Como esse processo é bem similar ao de alguns filósofos, que em geral estão sempre ocupados em responder perguntas cabeludas. O jornalista nesses casos pega um atalho e pergunta ao filósofo. Dependendo do filósofo, ele vai obter uma resposta X ou Y, ambas com validade, ou pode ter uma resposta igual a zero, também com validade.

terça-feira, 8 de abril de 2008

Um filósofo bem trapaceiro


Outro dia, um sujeito filósofo veio à empresa em que eu trabalho e produziu um falso equivoco similar a este. Ele narrava um acontecimento em que havia ido a uma empresa fazer uma palestra e tivera um contratempo com a recepcionista. O episódio, segundo suas palavras, foi mais ou menos assim (estou parafraseando):

- Bom dia, eu vim falar com o presidente da empresa.

- Qual o seu nome por gentileza?

- Professor Fulano de Tal

- De onde?

- De onde vim? – perguntou o filósofo – Não sei nem se vim de algum lugar.

- De onde o senhor é.

- No momento a única coisa que posso afirmar é que sou do lado de cá do balcão.

Em seguida ele narrou como a recepcionista chamou o segurança e como ele no fim triunfou, quando presidente do banco chamou a atenção da recepcionista, blá, blá, blá.

O professor (filósofo) Fulano de Tal transformou o jargão comum empregado por uma recepcionista em uma questão filosófica.

Transformar questões triviais em questões filosóficas não é um processo complicado. Aliás, é bem simples. Principalmente, quando estão envolvidas palavras como "onde", "quando", "pensamento", "tudo" "bem" etc. Desse modo a pergunta "De onde você vem" pode na cabeça de um mau filósofo se tornar uma questão absolutamente sem resposta. Ainda mais diante de um filósofo virtuose como este camarada.

Para a recepcionista, o segurança, o presidente do banco e para mim, inclusive, a pergunta é absolutamente pertinente. Isso porque envolve questões cotidianas normalmente aceitas de comum acordo. Pertencentes ao senso comum.

O que o filósofo da nossa história fez foi subtrair o sentido do senso comum e dar a ele uma nova roupagem. Mostrando que o senso comum está errado em considerar a questão “De onde o sr. Vem” como uma questão trivial. Porque, para esse sujeito obviamente, essa questão só pode ser respondida mediante um longa reflexão.

Problemas como esse são problemas fabricados. Trata-se de um mal-entendido provocados à revelia da lógica. Deixe-me dar um exemplo. Uma pessoa se dirige a um gramático e lhe pergunta: "Quantas horas". A mensagem é obviamente compreendida e pode ser perfeitamente respondida. Contudo um dos interlocutores, o gramático, considera que a pergunta não tem validade por não respeitar o padrão normativo da língua. Desse modo, o gramático se comporta como se não tivesse entendido a pergunta, criando uma falsa incompreensão de uma sentença corriqueira. O seu objetivo é dizer ao seu interlocutor (ou puni-lo com a incompreensão) pelo uso incorreto das normas e padrões da língua.

O problema com o gramático é simples de ser resolvido, já que a gramática da língua é – em quase todos os aspectos – definida. Então, basta seguir à risca as normas e regras gramaticais que a comunicação é perfeitamente possível. Um gramático jamais questionaria a construção da frase "De onde você vem?". Porque do único ponto de vista que poderia interessar ao gramático ela está correta.

Já o mau filósofo vê na questão um enigma cósmico. Por que? Simplesmente porque ele trapaceia com a linguagem. De posse de sua autoridade, ele a tira do senso comum e a torna propriedade de seus iguais. Já que não se conhecem regras definidas nesse caso, o mal entendido se perpetua com figuras como essa.

O milagre do vinho

Sei que é muito pedante, mas vou começar citando Voltaire. Voltaire discorreu páginas e páginas a cerca dos milagres atribuídos a divindades. Eu por acaso li pouquíssimas. Li basicamente um texto que sintetizava a coisa toda e dava uma idéia básica do que ele quis dizer quando torcia o nariz para milagres.

Ele contestava a importância do milagre como uma afirmação da fé em um Deus perfeito e onipotente (como alguns que existem ou não). Se Deus era perfeito, sua obra também deveria ser. Mesmo no que consideramos imperfeito, haveria ali um equilíbrio que tornaria o conjunto perfeito. Aí então o milagre seria uma intervenção de Deus na sua obra já perfeita. Ou seja, seria um reparo ali e outro aqui para arrumar algo que já é perfeito... ou não? Ou então há-de se questionar sobre a verdadeira perfeição da obra.

Deixe-me ser mais claro, ok? Suponhamos um relojoeiro perfeito, o relógio produzido por ele deveria ser perfeito. Se esse relógio precisasse de reparos o tempo todo, então onde estaria a perfeição.

Eu não sei se alguém já refutou isso. É bem, provável que sim, aliás, é deve até ser bem simples.
Bastaria dizer que a perfeição também é a necessidade de consertar as coisas para que a presença divina seja sentida. É um exemplo... ok. Bem ruim. Mas isso, além de não vir ao caso, é só para ilustrar o que eu quero dizer.

Eu sempre fiquei intrigado com essas religiões que fazem do milagre uma moeda de troca. Ou seja, eu me comunico telepaticamente com um Deus, peço a ele um emprego, um carro novo um favor pessoal qualquer em troca de bajulação eterna. O camarada por vezes recorre a esse contato telepático que tem com o soberano só para lembrar-Lhe que Ele é o maioral, o bonzão e coisa e tal. Sempre me intrigou a troca de favores pessoais por bajulação, seja com seu chefe, seu tio ou seu Deus.

Wittgenstein tinha, a meu ver, uma atitude exemplar, filho de um judeu convertido ao protestantismo e de uma judia convertida ao catolicismo, sua conduta religiosa era digna de nota. Quando lutou na primeira guerra, alistou-se no exército do império austro-húngaro e pediu para ser colocado na linha de frente. Em suas cartas as suas irmãs e colegas de Cambridge, Wittgenstein fala de balas que passavam voando sobre sua cabeça. Ele nunca rezou pedindo que seu Deus desviasse as balas de sua cabeça, mas sempre orou por coragem e iluminação.Wittgenstein acabou saindo vivo do conflito e foi durante esse período que escreveu o Tractatus Logico-Philosophicus.

Eu por exemplo só tive uma experiência milagrosa na vida. E se por isso tivesse de ser devoto de alguma deidade, essa seria Dionísio. Meu milagre, em geral vem engarrafado e dependendo do quanto você quer empenhar é maior ou menor, tinto ou branco, francês, italiano, espanhol, português, australiano, californiano, chileno e até (olha só!) argentino.

Annie Edson Taylor

Ela nunca escreveu nada, não é cantora, compositora, atriz, modelo, modelo e atriz, filha de dono de hotel ou ativista de alguma causa importante qualquer. Annie Edson Taylor poderia ser uma pessoa como eu ou você, se em 24 de outubro de 1901, (há 107 anos) ela não tivesse descido as cataratas do Niagara em um barril. Ela não foi a primeira a fazer isso, mas foi a primeira a chegar lá embaixo viva. Annie usou, para a travessia, um confiabilíssimo barril de picles forrado com um colchão. Precavida que era, testou seu equipamento primeiramente com um gato, que lamentavelmente não sobreviveu à queda. Mas isso não vem ao caso. O que importa é que Anne considerou essa experiência um sucesso e meteu-se ela mesma no barril para enfrentar o grande desafio de sua vida. Mas aí havia um problema. Ela precisava de alguém para empurrar o barril para dentro do rio. Para sua infelicidade o único maluco que ela conhecia era ela própria; além do mais ninguém queria ser cúmplice de um evidente suicídio. Nunca se soube quem a ajudou ou se alguém a ajudou, o que importa é que Anne desceu as cataratas e chegou ao seu objetivo viva, mas um tanto machucada.

Annie se tornou uma celebridade depois disso. Ela e seu barril eram convidados a shows e eventos diversos. Até que um belo dia, o agente de Annie deu no pé e levou consigo o barril. Sem ele (o barril e não o agente), ela não era mais do que um pavão sem rabo. Assim, gastou todo o dinheiro que ganhara até então com detetives e investigadores na tentativa de reaver o seu companheiro de travessia. Mas lamentavelmente, todo o capital se foi e o barril continuou desaparecido (alguns disseram que ele foi visto em Chicago, mas a informação nunca foi confirmada). Annie terminou seus dias nas cataratas do Niagara. Ela cobrava uma pequena quantia dos turistas para tirar fotos com ela.

Em 29 de abril de 1921, Annie sentiu-se mal e foi levada à enfermaria da comarca do Niagara, mas acabou falecendo aos 82 anos. Annie morreu no mesmo lugar em que não morrera 20 anos atrás e ali mesmo foi sepultada.

Democracia ou Macarrão.

Navegando na Wikipédia, descobri um fato curioso: no dia 25 de outubro se celebra tanto o dia da democracia quanto o dia do macarrão. Democracia tem a ver com macarrão? Bom, isso eu não sei. Use o seu poder de abstração. Há quem diga que tem a ver com pizza, por exemplo.

Democracia tem um sentido bem amplo, mas – em linhas gerais – pode ser entendido como o sistema político em que a vontade da maioria é acatada, mas que, sobretudo, respeita o direito de as minorias se expressarem. (Você pode ter uma definição melhor consultando a Wikipedia ou um dicionário, vá lá) .

Macarrão é como aquelas figuras humildes, como eu, chamam o spaghetti, o penne rigate, o fusilli, o tagliarini, o farfalle e o fettuccine.

Uma coisa boa de um regime verdadeiramente democrático é que ele minimiza o número de déspotas no poder (Não. Por mais que você não goste de Bush, Blair, Lula, Chavez e Cia. Não dá para chamá-los de déspotas). Quer dizer: chegar ao poder até chegam. Podem, por exemplo, até dizer que o partido Nazista chegou ao poder por meio das eleições, mas não dá para dizer que eles promoveram um governo democrático ao se estabelecerem no poder. E o Bush, gostem ou não, vai sair no ano que vem.

Democracia é boa? Por mais que nos abstenhamos de debater sobre os elementos que estão envolvidos na resposta, ela jamais será conclusiva. Todos nós sabemos que negar a democracia não significa defender a ditadura, claro. Embora muitos gostem que acreditemos que exista essa dualidade, ela, de fato, não se sustenta.

Eu diria que o que estraga a democracia e justamente o fato de se precisar de um governo. E a exceção dos gnomos e dos finlandeses (e olha que tem muita gente dizendo que finlandeses não existem) quase ninguém é 100% satisfeito como o governo que escolheu para si.

Olha, eu também não saberia responder a perguntas como: "Macarrão é bom?" Provavelmente eu diria que "macarrão, dependendo do modo de preparo, é gostoso". Com isso vemos que o problema está nas palavras e não na democracia em si (seja lá o que venha a significar a expressão "algo em si").

Vejamos por exemplo um grande exercício da democracia: eleições. Na passada, tivemos quatro deputados campeões de votos, pela ordem: Maluf, Ciro Gomes, Celso Russomano e Clodovil.

Uma velhinha, uma vez, confessou em público que votara no Clodovil para deputado. Quando todos protestaram, dona Isaurinha nos contou que em 1958, havia escrito na cédula o nome do rinoceronte Cacareco para vereador (ele teve por volta de 100 mil – o partido mais votado teve 95 mil –, sua candidatura fora uma invenção do jornalista Itaboraí Martins, em protesto contra o baixo nível dos 450 concorrentes). Ela se dizia infeliz com o advento da urna eletrônica que havia limado protestos bem-humorados como esse. Clodovil apareceu como candidato em um momento de grande desilusão política, e ela o havia enxergado como uma chance de ressuscitar o espírito do finado Cacareco. O que ela não contava é que Cacareco como bom rinoceronte, nunca escondeu suas verdadeiras intenções – aliás, estavam na cara. Já o nosso estilista deputado, mostrou-se afeito ao troca-troca, e já pulou para a base do governo. Parafraseando aquele cronista esportivo metafísico: "A nível de caráter, Clodovil não dá meio Cacareco"

Acontece que o Clodovil descobriu um novo nicho para as celebridades decadentes. É o que eu sempre digo se uma celebridade decadente tem algum caráter vai fazer filme pornô, se não tem nenhum entra para a política.

Nas próximas eleições, teremos Sérgio Mallandro candidato a vereador em São Paulo pelo PTB (Partido Trabalhista Brasileiro). Talvez o Sérgio Mallandro seja a síntese dos políticos brasileiros: fez carreira como malandro e nas eleições posa de trabalhista. Não duvido nada que ele seja eleito. Mas eu gostaria que no dia da posse o Mallandro trabalhista pedisse a palavra, subisse a tribuna e gritasse: "Ráááááááa. É pegadinha!"

E como perguntaria o Silvio Santos: "E o macarrão?" Isso não vem ao caso.

O Gramático



"O gramático

Os negros discutiam
Que o cavalo sipantou
Mas o que mais sabia
Disse que era
Sipantarrou."

Oswald de Andrade
Pau Brasil, 1925

É exatamente assim que eu me sinto ao meu respeito. Uma pessoa que dá palpites em absolutamente todos os assuntos. Meu irmão diz que eu sou um cara como Galvão Bueno, Caetano Veloso e Jô Soares: pessoas que acham que sabem tudo sobre absolutamente todos os assuntos.

Quando quis fazer esse blog, soube que seria um espaço para dar palpites sobre todos os assuntos, entenda ou não deles. Sei que em muitas vezes a minha opinião sobre as coisa é "sipantarrou", mas nem por isso perco a oportunidade ficar calado. Por essas razões me veio o nome do poema do Oswald para nomear esse blog.

Bem-vindo ao "O Gramático"