quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Capão do Diabo

– Dindouro, por que você é judeu?
– Ateu.
– Tem diferença?
– Claro. Judeu não acredita em Jesus, mas acredita em Deus. Ateu não acredita em Jesus nem em Deus.
– Pra mim, dá na mesma. Deus e Cristo são a mesma coisa. É Pai, Filho e Espírito Santo, aquela coisa, sabe?
– Sei. Mas para um judeu não é. Jesus é uma coisa e Deus é outra. Jesus era judeu.
– Era não.
– Procura na sua Bíblia que você vai ver.
– Era não. Escuta. É verdade que você já encontrou o Coisa-ruim?
– Não. Não é.
Tenham paciência com o Dindouro. Ele é daqueles que nunca gostou de ser contrariado. Ainda mais na sua fé de ateu. Assumir ter encontrado o Demônio iria abalar um pouco a sua crença de que o Demo não existe.
– Tanto disse que Deus não existe, que atraiu o Chifrudo para o lado dele.
– Ele tem parte com o Malvado. Isso sim. Por isso fala essas coisas.
Quando foi desvelado que o Dindouro havia encontrado o Pé-cascudo ninguém achou muito estranho. Afinal:
– Viu? Isso é bem feito para ele. Fica falando mal de Deus. Dessa vez, eu quero ver.
Embora seja coisa conhecida e sabida de todos, o Dindouro dissimula bem: nega e desconversa quando o assunto vem à baila. O azar dele é que dessa vez teve testemunha.
– Fosse uma, vá lá. Podia ser conversa. Mas duas.
Desse modo, são também duas as versões: uma é do Dindouro. Quer dizer, uma é de quem ouviu o Dindouro contando para alguém. Outra é a versão da testemunha (que pediu para não ser revelada) que espreitou o encontro. A coisa aconteceu mais ou menos assim:
Existe aqui na região um lugar conhecido como Capão do Diabo. O nome é por causa Dele que sobe dos infernos e vai ali para buscar as oferendas que "os seus" deixaram. Ninguém passa lá por volta de meia noite, que é a hora maldita. Porque se o Canhoto encontra um vivente no caminho arranca dele o espírito e o leva para a danação eterna.
O ocorrido se deu num dia em que o Dindouro teve um compromisso particular com uma dona casada lá em Brejo do Antão. Por um azar dos diabos, ele foi pego no durante. O Dindouro, que não é trouxa, tratou de montar num cavalo qualquer e sair assim mesmo completamente peladão em disparada. O marido saiu na sua carreira dele atirando. Sem ter tempo nem escolha, só restou ao Dindouro se embrenhar pelo Capão do Diabo. Ainda não era meia noite, mas como dizem por aqui: "um azar nunca vem sozinho". Não é que, logo nesse dia, o Cão-miúdo chegara mais cedo.
– Opa! Que moda é essa agora, filhote. É promessa ou aposta?
Não sei quem ficou mais surpreso se o Belzebu ou o Dindouro. Afinal, dar de cara com o Bode-preto assim é algo bem fora do normal.
– Eu também já vi.
– Quem?
– Ele.
– O Capeta?
- É.
– Ah, mentira.
– Mentiroso.
Por sua vez, emergir do submundo e encontrar um macho nu em cima de um cavalo é bem mais raro.
– Raro por quê? Ora. Satanás é o Grão-tinhoso, e já deve ter visto de tudo. E se ele já viu tudo, já deve ter visto muito elemento pelado em cima de cavalo branco.
Primeiramente, eu nunca disse que o cavalo era branco. Depois a história que eu sei é essa. Quem me contou falou que o Capa-verde ficou muito surpreso ao ver ali na sua frente um uma variante barbada da Lady Godiva. A versão menos confiável diz que o Dindouro sacou a arma e deu dois tiros no Excomungado, que evaporou numa nuvem de enxofre enquanto soltava uma gargalhada macabra. A outra versão diz que o Dindouro caiu de joelhos e implorou perdão ao menino Jesus e começou a orar e prometeu que dali em diante passaria a ir a igreja todos os dias e se tornaria um cristão exemplar.
– Nenhuma das duas histórias é verdadeira, mas no meu caso a primeira hipótese é mais provável. Mesmo eu não tendo arma e estando nu.
Mas o Cramulhano, em vez de ficar zangado ou amedrontado pelas orações, tomou foi simpatia do Dindouro..
– Pode parar, meu amigo. Pára essa rezadeira brava. Comigo você tem cartaz. É dos meus. Olha só, como você até hoje foi o único que veio aqui assim de peito aberto (e até mais), vou fazer assim: peça um desejo que eu realizo. Pode pedir qualquer coisa.
O Diacho fez ao Dindouro a mesma proposta que fez ao Nosso Senhor, quando O tentou no deserto. Mas como o Dindouro não tem firmeza, nem sabedoria de um Cristo, caiu na tentação de Lúcifer.
Sem nem parar para pensar disse que naquele momento o que mais queria era poder ficar invisível. Essa é a razão de o Dindouro ter hoje o dom de se tornar invisível.
– Por isso que ninguém viu o camarada chegar cavalgando desnudo pela cidade e entrar na sua pensão.
– Está explicado. Tudo se encaixa.
Bom, coitado daquele marido traído. Hoje, o Dindouro nem espera mais ele sair. Toma-lhe a mulher com ele ali deitado na mesma cama. Mas situação está igualmente difícil para todos os maridos da cidade, que ficam sempre alertas e suspeitosos de alguma coisa; sempre desconfiados das esposas. Afinal, o Dindouro sempre foi dado a mulheres que por sua vez já o achavam boa pinta. Invisível, agora, é um perigo.