quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Como forjar a verdade

Há diversos modos de se refutar uma questão filosófica. Posso dizer que eu já usei o mais estúpido deles. Obviamente (e felizmente), o cenário dessa discussão foi um bar no Bixiga em São Paulo, em meados dos anos 1990. O meu amigo dizia que acreditava na existência de uma verdade absoluta, e eu discordava dele. Na falta de bagagem de ambos, meu amigo resolveu que iria demonstrar a existência de uma verdade absoluta. Ele tinha um copo de uísque nas mãos e saiu-se com essa: "É uma verdade absoluta que vou beber deste uísque que está neste copo". Mais do que depressa, eu me adiantei e coloquei a mão sobre a boca do copo. Ele não teve dúvidas, tascou uma mordida na minha mão até que eu a retirasse do caminho, daí bebeu todo o uísque que havia. E foi assim, de uma maneira nem um pouco ortodoxa que meu amigo provou a existência de uma verdade absoluta.
Entendam que o que meu amigo defendia estava ligado ao essencialismo de Platão e à concepção referencial da linguagem de Santo Agostinho. Ele queria provar a existência de uma entidade metafísica, e não à existência da palavra verdade usada no cotidiano. E esse havia sido o nosso embate. Essa questão é portanto diferente da do meu aluno que via na existência do acaso uma afronta aos desmandos da sua divindade.
Hoje, sei que a última coisa que se deve fazer é refutar uma questão filosófica atirando-se sobre ela. Além disso, é muito fácil refutar a questão "É uma verdade absoluta que vou beber deste uísque que está neste copo" sem tomar uma mordida.
Há algumas formas bem ordinárias como: dizer que por não ter dito exatamente quando e nem exatamente o quanto do uísque beberia, a sentença "É uma verdade absoluta que vou beber deste uísque que está neste copo" não pode ser verificada em absoluto e por isso não tem validade como verdade absoluta. Ou mesmo que ele tivesse dito: Das 23 horas e 30 minutos e 12 segundos até as 23 horas e 31 minutos e 1 segundo, eu estarei bebendo 15 ml do uísque que está localizado neste copo." Ou suponhamos ainda que ele incluísse coordenadas exatas para a sua posição e a posição do copo e tudo mais. Mesmo assim o meu amigo falharia em sua tentativa de provar a existência, do ponto de vista filosófico, de uma verdade absoluta. Por que? Porque eu poderia simplesmente passar a exigir mais e mais detalhes que iriam além dos milionésimos de segundo e dos nanolitros. Até que se esgotassem as unidades de medida; quando poderíamos dizer: "Está vendo, não existem unidades de medida suficientes para atestarmos uma verdade absoluta."
Mas eu prefiro não ir por este caminho. Prefiro apenas dizer que a pergunta "Existe uma verdade absoluta?" é equivocada, e possível somente devido ao mau uso da gramática da palavra verdade.
Cotidianamente usamos a palavra verdade diversas vezes sem que ela nos cause nenhuma cãibra mental. E raramente temos dúvidas de como usá-la.
Compreendemos inclusive os diversos usos que podemos dar a palavras como "verdade".
Deixe-me dar alguns exemplos:
* "A verdade é a melhor camuflagem. Ninguém acredita nela". Max Frisch
* "A verdade brotará da terra, e a justiça olhará desde os céus". Salmos 85:11
Ou, ainda: imaginemos uma situação em que alguém esteja contando algo a uma pessoa, e uma terceira pessoa para reafirmar o que está sendo dito, profira a seguinte frase: "O que ele fala é verdade". Então? Quem melhor usou a palavra verdade?
Não vamos perder nosso tempo para tentar responder a essa questão. Não se pode dizer que exista um melhor uso para a palavra verdade, já que todos os usos servem perfeitamente para dizer aquilo que o falante quer. Em cada um dos casos citados somos capazes de compreender a gramática da palavra "verdade", e, dessa forma, estamos aptos a entender o que foi dito nas três sentenças. E todas são diferentes de usos como "A verdade come cenouras" ou "A verdade rasga todavia", que são usos notadamente equivocados para "verdade".
Desse modo a questão "É uma verdade absoluta que vou beber este uísque que está no meu copo" não está diretamente ligada a questão: "Existe a verdade absoluta?"
No primeiro caso temos um exemplo do uso corriqueiro para verdade (ainda que absoluta), na outra temos uma questão filosófica em que estamos atribuindo características adicionais para verdade.
Assim, eu refutaria não a questão "Existe uma verdade absoluta" (o que pretendo fazer em outro post aqui no "O Gramático". Mas sim o uso de uma "palavra" no uso cotidiano para sustentar a existência de uma entidade metafísica.

* A foto foi tirada por mim embaixo do Elevado Costa & Silva (Minhocão), à altura da Rua General Jardim. Desconheço a autoria do grafite.

Um comentário:

Anônimo disse...

Para forjar a verdade não basta contar algo por repetidas vezes?