segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Retrato do acaso como uma divindade

Um dia um de meus antigos alunos - um dos poucos admiráveis, por sinal – tentou me explicar a sua relação com a divindade a quem devotava sua fé. Ele dizia que não acreditava na existência do acaso. Segundo ele tudo o que existia ou acontecia fazia parte dos planos dessa divindade; e por mais trágicos que parecessem os seus desmandos, tudo sempre conspirava para um bem maior. Lembro-me que na ocasião ele chegou a dizer que "o acaso não existia". Eu o alertei para o risco de se pensar daquela forma (principalmente quando se crê em uma divindade criadora como a dele); já que na ausência do acaso, ele teria de procurar razões para todos e quaisquer elementos e eventos ad infinitum.
Decidi não prolongar a discussão por certo pudor pelo fato de que esse aluno acabara de sofrer um acidente que o deixara paralítico para o resto de sua vida. Além disso, me parecia cruel, num momento como aquele, questionar os fundamentos da fé de uma pessoa na sua condição. Entretanto, esse evento nunca me saiu da cabeça e não sei por que razão me retorna com freqüência. E hoje durante o meu banho matinal essa lembrança me ocorreu novamente. Resolvi, então, colocar aqui no "O Gramático", minha refutação àquela tese de meu ex-aluno.
De certo modo, a confusão que existe na sentença "o acaso não existe" é perceptível. O termo ou a palavra "acaso" existe; somos capazes de compreender o que uma pessoa quer dizer quando nos fala que "nos encontrou por acaso", por exemplo. Contudo, ficamos desconfortáveis quando deslocamos a palavra de seu uso cotidiano e olhamos para ela como se pudesse existir como um evento ou objeto isoladamente. Essa perplexidade decorre talvez de não usarmos de modo adequado a gramática da palavra "acaso".
Eu também não acredito na existência do "acaso" como entidade metafísica que se opõe à existência de uma divindade caprichosa como aquela em que meu aluno acreditava.
Pensar assim nos coloca diante do velho problema de encontrar um substantivo ao qual queremos atribuir-lhe características comuns de outros substantivos, como, por exemplo, "aquela pêra existe"; desse modo "aquele acaso existe". Voltemos à frase "nos encontrou por acaso", aqui vemos que o acaso marca uma ocorrência um "encontro". Algo que acontece e não algo que "existe".
Vamos imaginar que você olhe para um determinado objeto sobre a sua mesa e reflita sobre a existência da queda desse objeto. Ele não está em queda, mas ao empurrá-lo para fora de sua mesa, eis que ela ocorre. Então podemos concluir que ela existe. Mas você olha novamente para o objeto agora, no chão de sua sala, e novamente ele não está em queda.
O dilema do meu ex-aluno estava no uso impróprio da gramática da palavra "acaso". Ao atribuir-lhe uma existência (ou inexistência), ele cometeu um deslize equivalente ao de se atribuir um peso (ou uma cor) a uma nota musical, por exemplo. Como dizem: não é porque algumas coisas foram criadas, que posso inferir que "todas" as coisas foram "criadas", do mesmo modo, existência é uma característica atribuída a algumas coisas e que não necessariamente se aplica a outras.

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