quarta-feira, 10 de setembro de 2008

O fantasma do abismo

Dizem que morrera asfixiado. Ninguém se lembra muito bem da data. Mas alguns concordam que deve ter sido entre 1932 e 1935, provavelmente maio ou junho – porque chovia muito e fazia frio. Do nome, entretanto, todos se lembram muito bem: Douglas Macário. Era casado, sem filhos e morava na parte baixa da cidade. O que fazia no abismo? Ninguém nunca soube. Sabe-se que a sua viúva – durante o período em que ainda ficou na cidade – todo ano colocava flores na beirada do abismo; onde se supunha estar o cadáver do seu marido. Supunha-se, evidentemente, porque Douglas Macário jamais fora encontrado. Quando houve o desabamento, consideraram perigoso ir até lá retirar o cadáver. Além disso, dadas as proporções do acidente, nunca se cogitou a hipótese de Macário estar vivo. Por mais que tenha sobrevivido à queda (e pelo que dizem, o fez), o deslizamento que o soterrou fatalmente o matara. A esposa (há quem diga que seu nome era Dora outros que era Áurea) aos poucos foi sumindo. Os anos se passaram e só a viam uma vez por semana nas missas de domingo. Era vista, porém nunca notada. Até que foi definitivamente esquecida.
Só se lembraram dela, quando pela primeira vez o fantasma do marido foi visto vagando nas proximidades do abismo. Um jovem que voltava tarde da casa de sua noiva resolveu esticar um pouco a cavalgada e se perdeu. Ao encontrar o abismo, passou a margeá-lo para achar a ponte e por conseqüência a estrada. Topou com um homem sujo de terra que vagava por ali. Quando cruzaram os olhares, viu-se que no lugar dos olhos havia apenas dois buracos cheios de terra. O peão correu o mais que pode, quase caiu do cavalo direto no abismo. No dia seguinte, descreveu a cena para seus amigos na praça central. Foi Otacílio que se lembrou de Macário.
– É Macário.
- Quem?
- Macário.
- Que Macário?
E não é que a descrição batia com o homem com terra nos olhos? Quando foram informar à senhora Macário (Dora ou Áurea), foram informados pela ex-vizinha de que ela havia se mudado para outra cidade.
- E agora?
- Bom, mas mudou-se para onde.
- Até onde sei, foi morar com uns parentes.
- Mas onde?
De factual, não se tinha mais nada sobre a viúva; a não ser especulações sobre certo amante equatoriano que a levara para sua terra. Ou de que havia se tornado beata em Nova Fronteira.
– Vou lá no abismo à noite perguntar ao fantasma o que ele quer e por que ele voltou do além.
Na primeira noite, como havia trabalhado o dia todo e ainda tinha muito trabalho para o dia seguinte, o coitado do Hermes não pôde ir. Jurou que iria na segunda-feira, mas se esqueceu e saiu com os amigos para uma bebedeira e nunca mais tocou no assunto.
O Newtinho, que era kardecista, conversava com sua finada mãe todas as sextas-feiras no "centro". Ele disse que a mãe havia sabido por outro espírito que o Macário ainda "não sabia que estava morto" e por isso continuava vagando por aí. A falecida mãe, segundo o Newtinho, pediu orações para que o Macário recebesse ajuda espiritual para perceber que estava morto. Havia ainda o risco de ele ser obsedado por uns espíritos que gostam de ficar obsedando outros. Mas ninguém deu muita importância, porque logo depois o fantasma foi visto mais uma vez. Ele estava sentado no beiral de uma janela em frente a igreja da matriz. Quem o viu foi justamente o Dindouro. Logo ele. Nunca acreditou em nada, ateuzão das antigas, deu de cara com a alma penada do pobre Macário. O Dindouro sempre foi um camarada muito difícil, e nunca admitiu ou confirmou que vira o fantasma.
– Isso é história desse povo que não tem mais o que fazer. Além do mais, fantasma não existe.
Mas dizem que o Dindouro apareceu naquela noite na pensão onde morava branco igual leite de virgem, falando que vira a assombração. Contaram que o Dindou teve a seguinte conversa com Macário:
– Dindouro.
– Quem é?
– Sou eu, Macário.
– Macário?
– Sim. Eu quero que peçam para o Padre Antônio rezar a minha missa de sétimo dia.
O Dindouro, vendo tratar-se de coisa ruim, sacou o revolver e disparou dois tiros contra a alma do soterrado.
– Mentira! Viram? Eu nem revolver tenho.
As balas passaram direto pelo espectro que desapareceu depois de soltar uma gargalhada.
A quem diga que o diálogo foi outro, e que o fantasma pedia para salvar a sua esposa que estava prisioneira em uma caravana de ciganos. Mas como o Dindouro se recusa a falar no assunto e nega o ocorrido, nunca saberemos o que o fantasma de Macário quis de verdade com a sua última aparição.
O que ninguém sabia mesmo era quem seria esse tal de Padre Antônio. É bem provável que ele se referia ao Padre André, já que estava de frente da Matriz e o padre de lá é o André.
– Já houve um Padre Antônio aqui na cidade?
– Muito tempo atrás teve um; mas acho que o nome não era Antônio, não.
– Então, ou ele trocou o nome do padre ou o Dindouro ouviu errado.
– Tem certeza que ele falou Antônio, Dindouro?
– Ora, vá para a puta que te pariu!
No fim, resolveram perguntar à mãe do Newtinho que era naquele momento a pessoa mais próxima do finado fantasma.
– Ela mandou falar que um espírito de luz acabou resgatando Macário do Umbral. Agora ele vive feliz instalado em um subúrbio de uma cidade espiritual qualquer que não me lembro o nome. Tem até uma namorada lá. Ele agradece as orações de todos.
– Mas e da missa? Ela não falou nada?
Na ausência de informações concretas, foram pedir ao Padre André que rezasse, por fim, a tal missa de sétimo dia.
– Como é que eu posso rezar uma missa de sétimo dia para uma pessoa que já morreu há não sei quantos anos?
– Mas é a última vontade do falecido, Padre. Não pode contrariar.
– Vamos fazer assim. Na próxima missa de defuntos eu incluo o nome do Macário. Está bom assim?
– Ele falou sétimo dia.
Alguém se lembrou que Antônio, na verdade, era o nome do chefe de terreiro local: Pai Antônio de Logun Ede.
– O Macário era mesmo meio macumbeiro.
– O que significa Macário? É alguma coisa a ver com macumba, não é? Vai ver ele falou pai Antônio.
– E pai-de-santo reza missa?
– Mais ou menos.
No fim, por causa da comoção popular em torno do fantasma do abismo – como ficou conhecido o nosso caro Macário na ocasião –, seu nome foi incluído nas preces da missa de defuntos e deram um dinheirinho para o pai Antônio fazer uma oferenda (ou aquelas coisas que se faz em terreiro), mas não verificaram se ele fez mesmo.
Todos acham que o finado ficou muito feliz, porque foi logo depois disso que Macário realizou o seu primeiro milagre.

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